(Do
livro: Nietzsche Educador,
Rosa Maria Dial, Editora Scipione,1990)
Aos 24
anos Nietzsche se torna professor de filologia clássica na Universidade de
Basiléia, na Suíça..... (pág. 27, op. Cit.) Desde os primeiros anos de sua
atividade como professor, sabe que não poderá suportar por muito tempo o mundo
acadêmico, o enclausuramento em uma disciplina. Sua instintiva aversão pela
especialização, pela cultura enciclopédica e livresca com que os professores
pretendiam educar seus alunos, e sua ambição em ser mais do que um simples
professor crescem a cada dia.....
Nietzsche
despreza o sistema educacional que tem sob seus olhos. Esse sistema visa a
promover o "homem teórico", que domina a vida pelo intelecto, separa
vida e pensamento, corpo e inteligência. Em lugar de procurar colocar o
conhecimento a serviço de uma melhor forma de vida, coloca-o em função de si
próprio, de criar mais saber, independentemente do que isso possa significar
para a vida. Assim, avesso á erudição acadêmica, o jovem professor Nietzsche
sonha com um ideal de educação que o estudo dos gregos pré-platônicos lhe
revelara, uma educação ancorada nas experiências da vida de cada indivíduo, em
que "os modos de vida inspiram maneiras de pensar e os modos de pensar criam
maneiras de viver". Em abril de 1870, escreve a Rohde: "Ciência, arte, filosofia
crescem tão juntas em mim, que um dia parirei centauros". (Pág. 32 e 33, op. Cit.)
........ Poucos professores foram tão estimados pelos alunos quanto
Nietzsche. Seu temperamento, suas maneiras, o charme de sua personalidade
afável fascinava-os. Tinha o poder de entusiasmar os jovens para a disciplina
que ensinava. Excelente professor, não visava ao simples acúmulo de
conhecimento – pelo contrário, insistia no desenvolvimento do senso crítico e
da atividade criadora de cada um. Incitava os alunos a exprimirem livremente
suas opiniões, incentivava-os a fazerem suas leituras pessoais e as controlava
freqüentemente. Não precisava castigar, porque punha para trabalhar mesmo os
alunos mais relapsos. Tais elogios foram extraídos de relatos deixados pelos
alunos de Nietzsche..... (pág. 51, op. Cit.)
Louis
Kelterborn escreve em suas Memórias: "Minhas relações pessoais com
Nietzsche duraram 10 anos, de 1869 a 1879.... Sua maneira de se dirigir aos
alunos nos era absolutamente nova e despertava em nós o sentimento de nossa
própria personalidade. Soube, desde o início, estimular-nos para que tivéssemos
um maior interesse pelo estudo, talvez mais ainda de maneira indireta, pelo seu
saber e pelo seu exemplo, do que de maneira direta, ao nos declarar, por
exemplo, que todo homem deveria pelo menos uma vez na vida se dar ao trabalho
de consagrar ao estudo um ano inteiro, fazendo da noite o dia, e que esse ano
tinha chegado para nós.
Ele
não nos considerava em bloco, como uma classe ou um rebanho, mas como jovens
individualidades, .......... Durante a conversa o professor Nietzsche procurava
ouvir mais do que falar; através de perguntas estimulava seu interlocutor a
exprimir livremente suas opiniões, mesmo quando se tratava de um de seus
alunos. (pág. 51, 52 e 53 - op. Cit. )
Outro
aluno Traugolt Siegfried conta suas experiências durante seu convívio com
Nietzsche: "Cada
um de nós tinha como ponto de honra estar à altura das exigências de Nietzsche,
e aquele que, por preguiça ou por ignorância, o decepcionava recebia a censura
de seus colegas.... Sua gentileza e sua atenção encorajavam os alunos a
trabalhar e os incitavam a se exprimir livremente.(pág. 54 , op. Cit.)
Depoimento
(anônimo): "Era um homem de poucas palavras, mas
sua alegria era visível quando um aluno medíocre conseguia um bom resultado.
Cada um de nós ficava contente ao receber dele por um trabalho oral a
expressão: muito bem. Sua cordialidade, sua atenção incitavam ao trabalho.
Preparava os alunos para que soubessem falar espontaneamente, sem recorrer às
anotações. Demonstrava a todos a mesma delicadeza. Não deixava transparecer
nenhum desprezo pela massa de alunos indiferente, nem pelos mais fracos ou
menos dotados. Se Nietzsche era parcimonioso nos elogios, usa mais raramente
ainda de reprimenda... Nunca o víamos irritado, nunca elevava o tom da voz, nem
se alterava..." (pág. 55, op. Cit. )
Outro
depoimento (anônimo): "Nietzsche pedira a seu alunos que
lessem durante as férias a descrição do escudo de Aquiles e que fizessem
espontaneamente um trabalho sobre ele. Na volta às aulas, perguntou a um aluno:
‘Você leu a passagem em questão?’.
O
aluno, embaraçado, respondeu que sim, que tinha lido o texto, embora não o
tivesse lido.
‘Bem,
então", disse Nietzsche, ‘descreva-nos o escudo de Aquiles’. Durante o
silêncio que se seguiu, Nietzsche deixou passar os dez minutos que lhe teriam
sido necessários para expor completamente o assunto, andando pela classe
lentamente, com um ar atento, como tinha costume de fazer. Depois, sem perder
uma palavra a mais, disse: ‘Bom, agora que o senhor nos descreveu o escudo de
Aquiles, continuemos’ ".... (pág. 57, op. Cit.)
História,
cultura e educação - Segundo Nietzsche, a educação que os
jovens alemães recebem nas instituições de ensino funda-se numa concepção de
cultura histórica que, ao privilegiar os acontecimentos e as personagens do
passado, retira do presente sua efetividade e desenraíza o futuro.
Uma
história, um pensamento que não servem para engendrar vida e impor um novo
sentido ás coisas só podem ser úteis àqueles que querem manter a ordem
estabelecida e o marasmo da vida cotidiana.
É
pensando na juventude e confiando nela que Nietzsche grita: "Já basta de
cultura histórica". "De resto, abomino tudo aquilo que me instrui sem
aumentar e estimular imediatamente minha atividade." – com esta citação de
Goethe, Nietzsche inicia sua Segunda Extemporânea e dela tira a seguinte
conclusão: deve-se abominar o ensino que não vivifica e o saber que esmorece a
atividade. O homem deve aprender a viver, e só se utilizar da história quando
ela estiver a serviço da vida. (pág. 60, op. Cit. )
...........
A cultura, na perspectiva de Nietzsche, só pode nascer, crescer, desenvolver-se
a partir da vida e das necessidades de vida... (pág. 60, op. Cit.)
......
O excesso de história, o saber a qualquer preço, a ruminação do passado, a
cultura da memória – são essas as forças que separam a cultura da vida. Quando
a história se põe a serviço da vida passada, alerta Nietzsche, torna-se coveira
do presente. Depauperiza e provoca a degenerescência da própria vida. Longe de
alimentá-la, mumifica-a. Fossiliza o próprio tempo. O excesso de história
conserva a vida, mas não sabe fazê-la nascer; por isso, só faz depreciar a vida
em transformação.
É
preciso ficar claro que Nietzsche não tem a ingenuidade de opor à história a
ausência de sentido histórico. O que discute é em que medida a história pode
ser útil à vida.
Analisa
as causas e descreve os sintomas da doença histórica: a expansão do saber e o
conseqüente enfraquecimento da cultura.
Nós
não somos feitos para o saber, é o saber que é feito para nós. A vida tem
necessidade da história, e a história é própria do ser vivo. O excesso de
história, no entanto, envenena a vida.
.... O
que Nietzsche propõe para a cultura histórica é uma questão de dosagem. Não se
trata de negar o sentido histórico, mas de conter o seu domínio, de conduzi-lo
a uma justa medida.
O
artista, homem ativo por excelência, não deixa que a massa do saber histórico o
submerja, porque sabe que ela retiraria de si o único poder que lhe cabe na
terra: o da criação. (pág. 61, op. Cit.)
Busca
o passado, porque tem necessidade de modelos que não consegue encontrar ao seu
redor. Absorve e transforma em sangue próprio todo o passado, o seu e o dos
outros, para utilizá-lo em sua obra, mas sabe também que todo ato criador nasce
de uma atmosfera não histórica, de um estado de esquecimento. Para realizar sua
obra, o artista "esquece a maior parte das coisas para realizar uma só, é
injusto para com o que está atrás de si e só conhece um direito, o daqueles que
vai ser".
Mas o
homem de cultura histórica, diferente do artista, utiliza-se da história para
alijar o presente de sua efetividade: por toda parte, arrasta consigo as
"indigestas pedras do saber". Desconhece a força plástica de que
dispõe para digerir a multiplicidade de conhecimentos que pode armazenar sem
perigo para o seu desenvolvimento harmonioso, pois é ela que transforma em
sangue e carne todo o alimento intelectual e, de uma maneira geral, todas as
suas experiências. Orgulha-se de sua cultura histórica, porque esta o coloca no
fim da história.
Para
Nietzsche, a cultura histórica padece da "crença paralisante" de uma
representação teológica, herdada da Idade Média. Em outras palavras,
"sofre do pensamento da proximidade do fim do mundo", do terror do
"Juízo Final". Na origem do abuso da história, está o pessimismo
cristão. Sob a máscara da erudição, esconde-se uma "teologia
camuflada".
A
cultura histórica – "o olhar para trás, fazer as contas, concluir,
procurar consolo no que foi, por meio de recordações" – prediz uma
conclusão da vida sobre a Terra e "condena tudo o que vive a viver o
último ato". Tudo sobrevive sob esta máxima: "é bom saber todo o acontecido,
porque é tarde demais para fazer algo de melhor" Esse sentimento de
desesperança ensombrece toda educação e cultura superiores e impede que o novo
venha a existir. (pág. 63, op. Cit.)
A
educação e o homem erudito - .. O exame da literatura escolar e
pedagógica dos últimos decênios levou Nietzsche a constatar que, apesar das
flutuações do programas e da violência dos debates, o projeto educativo
continua a ser o mesmo: a formação do "homem erudito". O monótono
cânone da educação poderia resumir-se nestes pontos: o jovem aprenderá o que é
cultura e não o que é vida, isto é, não poderá de modo algum fazer suas
próprias experiências; a cultura será insuflada no jovem e por ele incorporada
sob a forma de conhecimento histórico; seu cérebro será entulhado de uma enorme
quantidade de noções tiradas do conhecimento indireto das épocas passadas e de
povos desaparecidos, e não da experiência direta de vida. Se, porventura, o
jovem sentir necessidade de aprender alguma coisa por si próprio e desenvolver
"um sistema vivo e completo de experiências pessoas", tal desejo
deverá ser abafado. Em compensação, terá a possibilidade de, em poucos anos,
acumular em si mesmo as experiências memoráveis do tempo passado.
Todo o
sistema educacional é concebido como se o jovem pudesse descobrir sua vida nas
técnicas passadas. (pág. 64, op. Cit.)
...
Saber muito e ter aprendido muito não são nem um meio necessário, nem um signo
de cultura, mas combinam-se perfeitamente com o contrário da cultura, a
barbárie, com a ausência de estilo ou com a mistura caótica de todos os
estilos".
.....
Quando Nietzsche denuncia o caráter imitativo dos alemães, não tem por objetivo
contrapor à mistura caótica de todos os estilos uma cultura nacional; pelo
contrário, critica o nacionalismo exacerbado dos que confundem cultura com as
glórias militares dos exércitos prussianos. Quando afirma a originalidade do
espírito alemão, dos seus filósofos e artistas nacionais, é para lutar contra a
imitação superficial dos costumes, das artes e da filosofia de outros povos e o
conseqüente desenraizamento da cultura alemã.
O
segredo dissimulado da cultura moderna, sua verdade eterna, é que ela não
possui nada de próprio, tendo-se tornado alguma coisa que se assemelha a uma
"enciclopédia ambulante", uma película que envolve os costumes, as
artes, as filosofias, as religiões e o conhecimento alheio: "... mas o
valor das enciclopédias está apenas no seu conteúdo e não no invólucro, na sua
encadernação de ouro; é desta forma que a cultura moderna é essencialmente
interior; no exterior, o encadernador inscreve qualquer coisa do gênero:
‘Manual de cultura histórica para homens de exterior bárbaro’". (pág. 65,
op. Cit.)
O
saber absorvido sem medida aparente pelo homem deixa de atuar como motivo
transformador, não aflora, permanece escondido e forma o que Nietzsche chama de
sua "interioridade" – um amontoado de coisas acumuladas
desordenadamente. A oposição entre interior e exterior no homem é, na verdade,
o sintoma mais evidente de uma cultura decadente e da ausência de uma unidade
de estilo. (pág. 66, op. Cit.)
.... O
que Nietzsche deplora na educação é a disjunção entre corpo e espírito. Sua
concepção de educação, fortemente influenciada pelos gregos, considera que
corpo e espírito devam ter o mesmo desenvolvimentos sem que haja a hipertrofia
de nenhum desses dois elementos. Reprova também o fato de a educação de sua
época não ter como objetivo formar personalidades fortes, mas sim homens
teóricos.
Sendo
assim, pode-se concluir que o excesso de história, a cultura livresca, a
separação do corpo e do espírito levam Nietzsche a dizer que a Alemanha não tem
exatamente uma cultura. Se ela existe, é apenas uma cultura artificial, e não a
expressão direta da vida; um suplemento, um excedente. Poderíamos desfazer-nos
dela sem o menor prejuízo para a vida, pois é apenas um conjunto de adornos
para tirar o homem de seu tédio. A Alemanha não possui uma cultura, nem pode
tê-la, em virtude de seu sistema educacional. A partir do reconhecimento dessa
verdade, afirma Nietzsche, deverá ser educada a primeira geração dos que irão
construir uma cultura autêntica.
Todavia,
essa geração deverá educar-se a si mesma e contra si mesma – isto é, terá de
formar novos hábitos e uma nova natureza, desfazer-se de sua primeira natureza,
abandonar seus primeiros hábitos, de tal modo que diga: "Que Deus me
defenda de mim, da natureza que me foi inculcada".
Todas
as ações ligam-se a apreciações de valor, e todas as apreciações de valor são
ou pessoais ou adquiridas – e essas última são, sem sombra de dúvida, as mais
numerosas. As pessoa submetem-se mais às convenções do que ás suas próprias
convicções. No primeiro parágrafo de Schopenhauer
como educador, Nietzsche relata a seguinte passagem: perguntaram a um
viajante, que havia percorrido muitos países e conhecido vários povos, qual a
qualidade que mais encontrara nos homens. Sua resposta foi esta: uma propensão
á preguiça. Por toda parte, encontrara homens entediados, escondendo-se atrás
dos costumes e das opiniões alheias. Por preguiça e temor ao próximo, os homens
se comportam de acordo com as convenções e seguem a moda do rebanho. Que motivo
têm para adotar sempre as opiniões e as apreciações de valor de seu semelhante?
Em uma palavra, o hábito....
Mas
para desprender-se e defender-se das virtudes do rebanho é necessário que os homens
engulam a seguinte verdade, como um remédio amargo: a primeira virtude do homem
é ousar ser ele mesmo. É preciso triunfar sobre si mesmo, isto é, sobre a
natureza que lhe foi inculcada e o tornou inepto para a vida. Para Nietzsche,
não há espetáculo mais hediondo do que ver um homem que se despojou do seu
"gênio", do seu ser criador e inventivo. Falta-lhe medula. Só tem
fachada. Assemelha-se a um "fantasma da opinião pública"........
(pág. 66 e 67, op. Cit.)
A
imitação criadora (pág. 75, 76 e 77, op. Cit.) - À primeira vista, pode parecer estranho
ouvir Nietzsche recomendar aos que querem se educar que procurem um modelo para
imitar. É bom lembrar que Nietzsche critica o "filisteu da cultura"
justamente pelo fato de ser um imitador, um espectador da vida e do pensamento
alheio, e não o autor de sua vida e de seus pensamentos. Para evitar
mal-entendidos, é preciso compreender a que tipo de imitação Nietzsche se
refere, e como se aproximar de um modelo que ao mesmo tempo eduque e eleve.
Nietzsche
adverte para o perigo que corre todo imitador. A dignidade de um pensador ou
artista, a sua superioridade sobre todos os outros homens podem fazer com que
os que queiram imitá-los fiquem de fora da comunidade dos ativos.
De que
modo isso pode acontecer?
A
imagem do grande homem pode produzir uma cisão na alma e na personalidade do
indivíduo, de tal forma que ele comece a viver em dupla direção: em contradição
consigo próprio e voltado para quem deseja imitar. Isso fatalmente lhe retirará
todo o poder de agir, e seu pensamento não poderá ser outro: "Não poderei
fazer melhor do que ele; portanto, permanecerei não fazendo nada". Assim,
novamente o indivíduo se deixa imobilizar: "Se tudo já está feito, é
melhor cruzar os braços e esperar o fim da história".
A
imitação a que Nietzsche se refere não é a imitação do "filisteu da
cultura", nem a imitação a que pode sucumbir um jovem bem-intencionado. A
imitação, para ele, é ativa, deliberada, construtiva, e permite a reconstrução
do modelo, a superação de si mesmo e a anulação do efeito paralisante de sua
época. Como bem escreve Lacoue
Labarthe, em seu livro A
imitação dos modernos:
"Assim,
a luta de Nietzsche contra a imitação e a cultura histórica consiste, no
essencial, numa conversão da mimesis... Converter a mimesis é torná-la viril. É fazer com que ela
deixe de tomar a forma de submissão para tornar-se realmente criadora. E, se na
imitação passiva ocorre um mal relacionamento com a história, é esse mesmo
relacionamento que é preciso converter e transformar em relacionamento
criador".
Em
suma, Nietzsche propõe uma imitação criadora. Não se trata de repetir
passivamente o modelo, mas de encontrar o que tornou possível sua criação. É a
imitação da "história monumental", isto é, do que é exemplar e digno
de ser imitado, e deve visar "a superar o modelo". Imitar o modelo
quer dizer mimetizar sua força criadora e transformadora. O exemplo é um
estímulo para a ação e para uma nova configuração.......
O
gênio e a cultura - ..........O percurso do gênio é sempre
penoso e solitário. Por ser original, isto é, ver sempre as coisas pela
primeira vez, é vítima de uma série de mal entendidos. Enquanto os homens
comuns e os eruditos se preocupam com o esquadrinhamento do que é útil e chama
a isso de cultura geral, o gênio está além das motivações interesseiras e
interessadas e tem uma visão de conjunto do conhecimento e da vida. É um
"homem-destino", um instrumento do fundo criador da vida, investido
de uma missão cósmica de conservar a vida e fazê-la frutificar Ultrapassa a compreensão,
mas não a percepção dos homens. (pág. 81, op. Cit.)
Os
setores que promovem a cultura deveriam ter como meta a criação do gênio.
Entretanto, sua finalidade é outra. Esse desvio ocorre, segundo Nietzsche, por
interferência de três egoísmos: o egoísmo das classes comerciantes, o egoísmo
do Estado e o egoísmo da ciência.
O
Egoísmo das classes comerciantes – As classes comerciantes necessitam da
cultura e a fomentam, embora prescrevendo regras e limites para sua utilização.
Eis o seu raciocínio: quanto mais cultura, maior consumo e, portanto, mais
produção, mais lucro e mais felicidade. Os adeptos dessa fórmula definem a
cultura como um instrumento que permite aos homens acompanhar e satisfazer as
necessidades de sua época e um meio para torná-los aptos a ganhar muito
dinheiro. Assim, os estabelecimentos de ensino devem ser criados para
reproduzir o modelo comum e formar tanto quanto possível homens que circulem
mais ou menos como "moeda corrente".
Com a
ajuda de uma formação geral não muito demorada, pois a rapidez é a alma do
negócio, eles devem ser educados de modo a saber exatamente o que exigir da
vida e aprender a ter um preço como qualquer outra mercadoria. Assim, para que
os homens tenham uma parcela de felicidade na Terra, não se deve permitir que
possuam mais cultura do que a necessária ao interesse geral e ao comércio
mundial.
O
Egoísmo do Estado – O Estado também deseja a extensão e a
generalização da cultura, e tem em mãos os instrumentos para isso. Tem
interesse no desenvolvimento intelectual de uma geração, para fazê-la servir e
ser útil às instituições estabelecidas. Quer fazer acreditar que é fim supremo
da humanidade, não havendo dever maior para o homem do que servi-lo:
apresenta-se como o "mistagogo
da cultura", o mentor das artes, quando, na verdade, visa apenas ao
seu próprio interesse – ou seja, formar quadros de funcionários para mantê-lo
existindo.
O
Egoísmo da ciência – Em terceiro lugar, vem o egoísmo da
ciência e a singular atitude de seus servidores: os cientistas. Enquanto se
entender por cultura o progresso da ciência, esta passará impiedosa e gelada
diante do grande homem que sofre, pois vê em todo lugar problemas de
conhecimento. A principal característica do cientista é a avidez insaciável por
conhecimento. O avanço a qualquer preço e a toda velocidade; a pesquisa cada
vez mais "produtiva", no sentido econômico da palavra; o culto
idolátrico do real, "fazendo justiça aos fatos" – eis o que
caracteriza a ciência. (pág. 82, op. Cit.)
O
cientista, como Nietzsche faz observar em sua livro Assim falou Zaratustra, é o
"homem da sanguessuga", que substitui o culto dos valores divinos
pelo culto da ciência. Míope para tudo o que está fora de sua lente de aumento,
é incapaz de olhar para além de suas próprias botinas; preocupado com as mais
minúsculas questões – por exemplo, com o "cérebro da sanguessuga" –
transforma ‘o próprio conhecimento numa sanguessuga que escarifica e mutila a
própria vida. Com a pretensão de tudo julgar objetivamente, disseca, apalpa,
despedaça; em suma, anatomiza o que chama de realidade e reza a ladainha dos
"coveiros do presente": "Tudo merece perecer". (pág. 83,
op. Cit.)
Tudo
analisar e decompor esteriliza a força criadora humana. A vida tem necessidade
de um olhar que a embeleze, pois ela só é possível "pelas miragens artísticas".
O homem da ciência retira o véu benfazejo que cobre a vida e a embeleza, e isso
tudo em nome do real e da verdade. Nietzsche, ao criticar a ciência, não visa
aniquilá-la, mas conter seus excessos.
A vida
em pedaços garante menos vida para o futuro do que a vida enfeitiçada por
algumas quimeras.... (pág. 83, op. Cit.)
Ciência
e arte (pág. 101, 102, op. Cit.) - Pois a ciência, ao querer conhecer a vida
custe o que custar, "destrói as ilusões" que ajudam o homem a viver.
Incapaz de dar sentido e beleza à existência, de considerara a vida em seu
conjunto, coloca por terra o único ambiente em que se pode viver.
Ao
instinto desenfreado da ciência, que tudo quer conhecer, que revira a vida e a
vasculha em seus mínimos detalhes, Nietzsche opõe a arte. Esta, ao contrário da
ciência, não se interessa por tudo o que é "real", não quer tudo ver,
nem tudo reter, é anticientífica.
Mais
importante ainda: a arte, em lugar de dissecar a vida, é fonte de dissimulação.
Numa época em que vida e cultura estão separadas, a arte tem um papel
fundamental: afirmar a vida em seu conjunto. Reforça certos traços, deforma
outros, omite muitos outros, tudo em função da vida, da transfiguração do real.
Em suma, a arte nos liberta, ao passo que a dura e cotidiana experiência do real
nos submete.
Nietzsche
como educador hoje (pág. 114 e 115, op. Cit.) - Será que o pensamento de Nietzsche pode ser usado, hoje,
como um instrumento para pensar a educação: Será que seu exemplo ainda pode
servir para nos educar e, consequentemente, educar a quem educamos?
Não há
dúvidas quanto a essas questões. Nietzsche apontou problemas que, apesar dos
esforços de alguns educadores bem-intencionados, ainda não foram resolvidos. Um
deles – e talvez o mais grave – é o ensino da língua materna, até hoje um
grande desafio. Cada vez mais, abandona-se a formação humanista, em favor de
uma educação voltada para as necessidades do parque industrial.
Isto
incentiva os indivíduos a um preparo rápido – uma profissionalização – que os
torne aptos a trabalhar na "fábrica da utilidade publica" e a servir
como técnicos na maquinaria do Estado. Uma formação humanista seria um luxo que
os afastaria do mercado de trabalho.
Como
filósofo-educador e "médico da cultura", Nietzsche repensou as
questões de educação a partir das necessidades vitais (que não se resumem à
sobrevivência), e não às do mercado de trabalho, criado para satisfazer as
exigências do Estado e da burguesia mercantil.
Adotou
a vida como critério fundamental para todos os valores da educação e, com isso,
destruiu as convicções que sustentavam o sistema educacional de sua época.
...
Tomar Nietzsche como exemplo significa educar-se incansavelmente; adquirir uma
capacidade crítica pessoal e uma capacidade de pensar por si; aprender a ver,
habituando o olho no repouso e na paciência; dominar o "instinto do saber
a qualquer preço", utilizando este princípio seletivo: só aprender aquilo
que puder viver e abominar tudo aquilo que instrui sem aumentar ou estimular a
atividade; manter uma postura artística diante da existência, trabalhando como
artista a obra cotidiana; "dar à vida o valor de um instrumento e de um
meio de conhecimento", procedendo de modo que os falsos caminhos, os
erros, as ilusões, as paixões, as esperanças possam conduzir a um único objetivo
– a educação de si próprio.
Em
suma, tomar Nietzsche como exemplo não é pensar como ele, mas sim pensar com
ele: "Nietzsche" não é um sistema, nem mais um pensador com um
programa de educação. Nietzsche, como afirma Gérard Lebrun, "é um
instrumento de trabalho insubstituível".
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