sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Igreja em serviço à sociedade

Antonio Manzatto
  
O Vaticano II compreende a Igreja presente no mundo como servidora dele na proclamação da boa-nova da salvação em Jesus Cristo. O papa Francisco retoma esse ensinamento, lembrando que o mundo todo precisa ser salvo, e por isso a confissão de fé e a ação eclesial têm uma dimensão social que lhes é inerente e precisa ser realizada como contribuição dos cristãos na construção de uma sociedade de paz.
“Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176).
1. Igreja e mundo
Na Antiguidade, a Igreja enxergava sua relação com o mundo como uma relação de oposição. Isso transparece no período da Igreja primitiva e também na época patrística. Por mundo se entende, evidentemente, não o universo físico, mas sobretudo o social. Falando de uma Igreja contra o mundo, fala-se de uma Igreja contra a sociedade tal qual organizada naquela época. E não é difícil entender o porquê, pois, afinal, se vivia o início do cristianismo em ambiente de confrontação e mesmo de perseguições, sobretudo por parte do Império Romano. Daí que ser contra o mundo era uma postura quase natural dos cristãos, que proclamavam que Jesus é o Senhor, e não César.
A evolução do tempo e da história faz também evoluir a compreensão que a Igreja tem de sua relação com o mundo. No período medieval, então, haverá uma espécie de identificação entre Igreja e mundo, não apenas porque o cristianismo passou a ser a religião oficial do Império Romano e dos Estados que lhe sucederam, mas também porque o mundo todo, ao menos do lado ocidental, passou a ser cristão. Não havia maiores diferenças entre ser cristão e ser cidadão e o batismo era a ocasião em que se oficializava a pertença do indivíduo ao grupo social. Assim, a Igreja era o mundo e o mundo era a Igreja, uma relação de identificação que perdurou praticamente durante todo o período medieval.
O surgimento da modernidade provoca nova organização dessa relação, ainda que de maneira unilateral. O mundo passa a compreender-se como algo diferente da Igreja, isto é, a sociedade começa a organizar-se fora da influência eclesiástica. O símbolo é a Revolução Francesa, da qual decorre a compreensão de que os Estados podem organizar-se como entidades separadas das influências religiosas cristãs. Ainda que não se preconize a laicidade do Estado, que virá a ocorrer mais tarde, ainda assim já na época se compreende a sociedade separada da Igreja. A reação da Igreja foi de insatisfação com essa situação, e seu combate ao modernismo todos conhecemos bem. Ainda hoje há setores na Igreja que combatem essa situação e anseiam pela volta ao regime de cristandade, por motivos igualmente conhecidos.
2. Vaticano II
A separação entre Igreja e mundo faz que o mundo evolua tanto na organização social quanto na capacidade técnica, enquanto a Igreja permanece como que em passo medieval, incapaz de acompanhar os avanços vividos pelas sociedades. A inspirada iniciativa de João XXIII de convocar o Concílio Vaticano II cria uma oportunidade de reaproximação entre a Igreja e a sociedade com seus anseios. A esse empenho eclesial de reencontrar e acompanhar o passo das sociedades humanas chamou-se aggiornamento, atualização. Eis a grande realização do Concílio Vaticano II: possibilitar que a Igreja consiga de novo dialogar com o mundo e a humanidade que o habita. Mais ainda, a Igreja se reconhece, nas palavras da Gaudium et Spes, servidora do mundo, pois não é a Igreja que precisa ser salva, mas o mundo.
Essa noção de Igreja servidora do mundo é que comandará a ação pastoral nos anos seguintes ao concílio, exatamente com a Igreja atentando ao fato de que sua ação é, antes de tudo, pastoral. Por ação pastoral se entendem não apenas as atividades religiosas, como orações e celebrações, e administrativas, próprias da organização eclesiástica, mas também aquelas que se preocupam fundamentalmente com a organização da vida das pessoas e das sociedades. Têm lugar, então, os grupos pastorais que atuam junto ao mundo do trabalho, da cultura, da política e assim sucessivamente. A pastoral é entendida como a ação do pastor, cuja função é cuidar do rebanho. Não é o rebanho que existe em função do pastor, nem é função do rebanho cuidar do bem-estar do pastor. Ao contrário, é o pastor que existe em função do rebanho e deve dele cuidar. A Igreja vê sua ação como a de cuidado com o mundo, com as pessoas que o integram. É nesse sentido que ela é servidora do mundo e lhe anuncia e testemunha a salvação.
As preocupações com as situações concretas vividas pelos povos passam a figurar na agenda da ação pastoral. A paz, o desenvolvimento dos povos, o estabelecimento da justiça entre as nações, as possibilidades com relação ao trabalho, à cultura e o acesso aos benefícios da sociedade são assuntos constantes nos documentos eclesiais e vivos nas preocupações dos pastores. A Igreja abre-se ao mundo, reconhecendo sua autonomia, a autonomia das realidades terrenas, e, por sua vez, o mundo aceita dialogar com a Igreja como uma interlocutora confiável. As preocupações sociais integram o horizonte de preocupações da Igreja, pois “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (GS 1).
Paulo VI, o papa que implementou as decisões conciliares, escreveu em 1974 importante documento sobre a ação evangelizadora da Igreja, a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. Ocorre que rapidamente houve queixas no sentido de que a Igreja estaria abandonando sua missão religiosa, anunciar o evangelho, e assumindo um discurso social que não lhe dizia respeito. O papa, então, lembra que “entre evangelização e promoção humana existem laços profundos”, de tal forma que não se pode pensar a evangelização como ação eclesial sem que as preocupações com a promoção humana lhe acompanhem. A preocupação fundamental da Igreja é com o ser humano, com todo homem e o homem todo, para dizer como o papa Paulo VI na EncíclicaPopulorum Progressio.
Foi nesse horizonte do Vaticano II que se organizou no Brasil a Campanha da Fraternidade, e atualmente os bispos lhe dão um conteúdo de alcance social, que relaciona a fé com a vida prática das pessoas e promove intensa campanha pela humanização das relações na sociedade. Neste ano de 2015, o tema é como que a compilação disso que até agora dissemos: “Fraternidade, Igreja e sociedade”; o lema, “Eu vim para servir”, lembra o compromisso do serviço dos discípulos de Cristo.
3. O papa Francisco
É convicção de todos que Francisco humanizou o papado. Seus gestos, palavras e preocupações mostram claramente o papa como um ser humano e, mais que isso, como alguém preocupado com as pessoas. Sua postura é intencional e nitidamente pastoral, e seu ensinamento precisa sempre ser entendido nessa direção. Trata-se do pastor que se preocupa com o rebanho, daí sua atenção às periferias existenciais, à prática da misericórdia, a uma Igreja que precisa sempre estar pronta a acolher, perdoar e curar feridas. Uma Igreja que não pode se satisfazer em si mesma, mas precisa missionariamente ir ao encontro do mundo, das pessoas e da sociedade, para ali anunciar e testemunhar o evangelho de Jesus, que Aparecida chamava de evangelho da dignidade humana.
A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, documento papal que fala sobre a nova evangelização e alude, propositalmente, aos dois documentos que trazem o ensinamento do Vaticano II sobre a ação eclesial,Gaudium et Spes e Evangelii Nuntiandi, tem um capítulo inteiro dedicado à dimensão social da evangelização. Francisco parece dar um passo além na compreensão da relação entre o anúncio da Igreja e a organização da sociedade. Não se trata de querer impor ao mundo um modelo social, como no período de cristandade. Nem se trata de discurso que quer acomodar a vivência eclesial às situações do mundo contemporâneo. E também não se trata de aceitar, passivamente, um distanciamento entre a Igreja e o mundo. Trata-se de retomar a postura conciliar da Igreja como servidora do mundo pelo anúncio e testemunho profético. Por isso, falando a cristãos, a Evangelii Gaudium afirma que a evangelização tem, mais que consequência, uma dimensão social.
O passo avante é importante. Não se vê simplesmente a ação social de promoção humana como consequência da ação evangelizadora da Igreja, algo que parece ser óbvio. Também não se diz que o trabalho da Igreja não tem nada a ver com a sociedade, como se fosse simplesmente anúncio de verdades e práticas religiosas, das quais a caridade seria como que uma derivação de perfeição. Francisco afirma que a ação social é uma dimensão da ação evangelizadora, de tal forma que não há evangelização sem promoção humana. Não se trata de consequência, mas de composição: a preocupação com a forma de organização da sociedade é componente do trabalho evangelizador. Afinal, lembra ele, não é apenas a pessoa que é salva pela ação de Deus, mas também suas relações (EG 178). Assim, a caridade é constitutiva da essência da Igreja e de sua missão (EG 179), de maneira que, mesmo no querigma, existe um conteúdo social, em forma de convivência e ajuda ao próximo (EG 177). E o papa ainda aponta dois lugares prioritários onde deve se manifestar de maneira decisiva a dimensão social da ação evangelizadora: a realidade de sofrimento dos pobres e a implementação da cultura do diálogo para a vivência da paz.
4. Opção pelos pobres
A opção pelos pobres é mais teológica que política ou sociológica (EG 198) e, por isso, Bento XVI já a caracterizava como implícita na fé cristológica (DAp 392). Trata-se de reconhecer, em primeiro lugar, a presença de Deus no meio dos pobres, onde ele se revela e oferece um caminho de salvação para toda a humanidade. Paulo já a afirmava como critério da fidelidade ao evangelho de Jesus (Gl 2,10), de tal forma que, sem ela, não há verdadeiramente evangelização (EG 199). Por isso, Francisco afirma sonhar com uma Igreja pobre para os pobres (EG 198).
Se, de um lado, não se pode apenas ter atenção à ortodoxia e se preocupar com eventuais erros doutrinais, por outro, a opção pelos pobres não se concretiza apenas em um ativismo expresso em programas de assistência ou promoção humana, mas também em uma presença solidária junto aos pobres (EG 199). É um estar ao seu lado, ser com os pobres, preocupar-se com sua realidade pessoal e humana, em espírito de comunhão e convivência. A Igreja não é alheia ao mundo dos pobres, e estes não podem ser estranhos na comunidade eclesial. O amor aos pobres é que diferencia a opção pelos pobres de qualquer outra prática ideológica, evitando sua instrumentalização (EG 199).
Ainda mais, a opção pelos pobres não se realiza apenas em ações de assistência em suas necessidades. Elas são necessárias e não podem ser esquecidas, mas não são suficientes. Porque não se trata apenas de alimentá-los ou proporcionar-lhes possibilidades de sobrevivência, mas sobretudo eliminar as desigualdades, a fim de que o mundo possa se constituir em ambiente onde o valor da pessoa humana seja privilegiado. “A dignidade da pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política econômica” (EG 203), lembra o papa, e as causas da pobreza precisam ser atacadas para que a sociedade seja mais justa e humana (EG 202-206).
A ação cristã se transforma, por isso, em compromisso político que visa transformar não apenas o coração das pessoas, como se isso bastasse para transformar automaticamente as situações de injustiça no mundo. Deve-se transformar também as bases estruturais da sociedade, e por isso nenhuma comunidade cristã pode ficar alheia à realidade de vida dos pobres. Os discursos vazios, as práticas religiosas não comprometidas ou mesmo as simples críticas ao governo não dizem da qualidade da vida de fé da comunidade eclesial, mas sim seu efetivo compromisso com a realidade de vida dos pobres, em atitude de solidariedade (EG 207). Ou, para dizer em outras palavras, a comunidade cristã morre se não houver em seu interior efetivo compromisso com a vida daqueles que são os últimos da sociedade.
5. Cultura do diálogo
A paz é fruto da justiça, já lembrava Paulo VI, e por isso ela não pode ser entendida como simples ausência de violência ou imposição de silêncio dos mais fortes sobre os mais fracos. Não é o modelo da Pax Romana que deve ser seguido, porque isso não significa verdadeira paz (EG 218). Esta se baseia no respeito à dignidade das pessoas, aos direitos humanos e aos direitos dos povos. Não se deve escamotear os conflitos, mas enfrentá-los com serenidade para que eles possam ser superados.
Por isso Francisco lembra que o estabelecimento da paz não se faz simplesmente na interioridade das pessoas ou no nível interpessoal. Deve-se atingir um nível mais amplo e profundo, aquele da formação da sociedade e da convivência entre os povos. Uma sociedade ou povo não se constitui por simples aglomeração de pessoas, mas por relações estabelecidas entre elas e governadas por princípios que valorizam o bem comum, segundo os ensinamentos da Doutrina Social da Igreja. Por isso o papa ensina que “o tempo é superior ao espaço” (223-225), o que permite pensar a construção social a longo prazo sem a obsessão de resultados imediatos. Ensina ainda que os conflitos não podem ser ocultados, mas “a unidade prevalece sobre o conflito” (EG 226-230), ou seja, em vez da tentativa de impor sobre os outros a solução do grupo que se quer vitorioso, o princípio da unidade exige uma capacidade de convivência na diferença como proposta de solidariedade.
Além disso, “a realidade é mais importante que a ideia” (EG 231-233), isto é, o pensamento está a serviço da compreensão da realidade e não pode ocultá-la, como acontece com “os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projetos mais formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria” (EG 231). Finalmente, Francisco lembra que “o todo é superior à parte” (EG 234-237), com a proeminência do bem comum sobre os possíveis benefícios particulares, sabendo que se deve trabalhar naquilo que é local e particular, mas com perspectiva ampla de universalização e de totalidade.
Estes são princípios que norteiam o diálogo social e, ademais, o trabalho de evangelização. Não se constrói a paz sem a cultura do diálogo. Para a ação eclesial propriamente dita, ele aponta três campos imprescindíveis na atualidade: o diálogo com os Estados, com a sociedade e com os que não são católicos (EG 238). Nesse diálogo, a Igreja fala a partir de seu lugar específico, o da experiência da fé, sem se apresentar como portadora de soluções para todas as questões da humanidade. Ela participa deste encontro com sua história e sua experiência, juntando-se a outras forças sociais e acompanhando as propostas que melhor se apresentam no momento, lembrando sempre a permanência dos princípios da dignidade humana e do bem comum (EG 139).
A postura dialogal da Igreja é importante no contexto atual até para ela mesma, pois significa a superação da perspectiva de cristandade, na qual o religioso tem a solução para cada questão e a sociedade se organiza à luz de seus princípios ou definições. Hoje a sociedade é plural e, como a construção da paz não se faz por imposição, deve-se cultivar espaços de encontro e interação sobre os diferentes pontos de vista e propostas. A perspectiva é de diálogo amplo, que se estabelece com todos, com “a gente e sua cultura, e não com uma classe, uma fração, um grupo ou uma elite”, pois o que se busca não é a formação de “uma minoria esclarecida ou um grupo testemunhal […] mas um pacto social e cultural” (EG 239). O que se quer não é uma solução universal, já que ela será sempre parcial e contextualizada, nem uma apresentação de verdades conceituais que se querem impor por proselitismo, mas uma espécie de consenso que possibilite a convivência em paz, a fim de que se possa avançar na integração social de todos. Esse consenso será sempre limitado e provisório, precisando ser reconstruído pelo diálogo permanente estabelecido entre os diferentes.
Aqui se tem toda uma perspectiva diferente do que se constrói com o trabalho evangelizador. A nova evangelização não se resume à simples catequese, entendida como ensinamento de fórmulas doutrinais, ou à realização de celebrações ou momentos devocionais que emocionem ou atraiam multidões. É claro que tudo isso pode ser feito; contudo, o que se busca é a prática da fraternidade em vista do estabelecimento de uma sociedade de convivência, onde as diferenças sejam respeitadas e ninguém seja excluído, a começar pela integração dos pobres e dos sofredores.
6. Teologia latino-americana
É verdade que a Igreja da América Latina se caracteriza por uma preocupação social bastante pronunciada, e isso vem de longa data. As comunidades eclesiais de base, por exemplo, atuaram decididamente na participação política em vista da conquista de melhores condições de vida para a população. A Igreja no Brasil, como um todo, caminhou bastante nessa direção e a própria realização, a cada ano, da Campanha da Fraternidade é testemunha disso. Muito do que se conseguiu em avanço na sociedade brasileira, a começar pela conquista da redemocratização, contou com a participação dos cristãos e da Igreja. É verdade também que, de tempos para cá, a preocupação social cedeu lugar a outras práticas eclesiais, algumas mais preocupadas com certa interiorização do sentimento religioso. Em certo sentido, a Igreja preocupou-se mais em olhar para si mesma, seu interior e sua organização, do que para seu lugar na sociedade e a realidade do mundo que a cerca.
O papa Francisco parece indicar o caminho da retomada das preocupações sociais. É verdade que a sociedade mudou bastante nos últimos anos e o discurso teológico-pastoral de décadas passadas não pode simplesmente ser aplicado na atualidade. A teologia tem consciência disso e por isso avançou nos últimos anos, também aquela que leva o nome de teologia latino-americana. O discurso foi atualizado, mas permaneceu a preocupação com os pobres e com a organização de uma sociedade da qual todos possam participar. Não é de estranhar que o papa latino-americano retome as intuições e práticas fundamentais da Igreja do continente e as apresente, renovadas, a todos os cristãos.
 Fiel ao Vaticano II e à realidade dos pobres tal qual apresentada pela teologia da Igreja na América Latina, Francisco insiste no trabalho evangelizador que converta, além dos corações, as estruturas da sociedade em vista da concretização do Reino de Deus. O discípulo missionário de Jesus Cristo, lembra o papa, não se satisfaz em viver sua fé apenas em comportamentos religiosos, mas vai além, traduzindo nos atos cotidianos a convicção de que o Reino de Deus está presente no mundo e se pode viver em sua dinâmica por meio da solidariedade com os pobres e o fortalecimento dos laços de fraternidade entre todos, em um relacionamento novo que permita o respeito às diferenças, aos direitos humanos e à integridade da criação.
7. Igreja e sociedade
A fé cristã não pode ser reduzida ao domínio privado da vida. Aliás, lembra Francisco, nenhuma convicção religiosa pode sê-lo. Se a sociedade atual é plural, também no aspecto religioso, isso não significa a “privatização das religiões, com a pretensão de reduzi-las ao silêncio e à obscuridade da consciência de cada um ou à sua marginalização no recinto fechado das igrejas, sinagogas ou mesquitas” (EG 255). O diálogo ecumênico e inter-religioso não se esgota no respeito às diferentes formulações doutrinais, mas alcança propostas que visam ao estabelecimento da paz no espaço público. O respeito devido a quem não crê não pode se impor arbitrariamente, silenciando as convicções religiosas de quem crê. Afinal, a religião não visa preparar o crente apenas para viver no outro mundo, mas também para viver neste mundo, transformando-o em outro, onde reine a justiça, a tolerância e a fraternidade. Este parece ser o ponto central do ensinamento de Francisco, o qual a Campanha da Fraternidade pode aprofundar, no sentido de perceber a função social da religião e, mais que isso, a dimensão social do trabalho de evangelização.
A fé não se reduz ao privado, pois comporta implicações sociais. A convicção da fé cristã pode, ou deve, levar o crente à manifestação mais contraditória da mística do amor ao próximo: a da prática política, própria do discípulo missionário de Jesus Cristo. Afinal, a pregação da Igreja é bem mais que o anúncio de algumas verdades religiosas, pois é o anúncio da chegada do Reino de Deus. A Igreja não se anuncia a si mesma nem tem um fim em si mesma, mas está a serviço do Reino, exatamente como Jesus fez durante sua vida. Trata-se de anunciá-lo e fazê-lo acontecer, sem resumir a fé ao culto ou à oração, mas envolvendo-os no compromisso com uma nova sociedade, mais humana e solidária. Afinal, o Reino de Deus realiza-se em novas relações: de filiação estabelecida com Deus e de fraternidade estabelecida entre as pessoas.
Não deixa de ser curioso notar certas tendências culturais atuais, algumas às quais se adere rápido demais, como as do racionalismo ou de um laicismo exagerado, que não aceitam a afirmação da dimensão social da fé cristã. Há também tendências eclesiais que agem assim, como o conservadorismo, que quer guardar a fé no domínio do privado, sem aceitar suas implicações sociopolíticas. Lembram que na sociedade há quem não crê e, por isso, não se pode impor-lhes convicções religiosas ou derivadas da religião; ou então lembram o caráter confessional da teologia e a prática de fé como interiorização espiritual. Não é sem interesse notar que o discurso religioso conservador se liga a um discurso social dito progressista, talvez porque a ideologia dominante de ambos seja a mesma, a de guardar os benefícios da sociedade para aqueles que a dominam, evitando a partilha dos bens sociais. É preciso aqui recuperar o caráter profético do anúncio do Reino e da proclamação da fé, também para denunciar os interesses que se escondem atrás de belos e elaborados discursos, até porque faz parte do trabalho de evangelização a denúncia das idolatrias. Francisco, aliás, denuncia também as novas idolatrias que fundamentam o sistema social atual (EG 55-56), combatendo-as para que se possa construir uma sociedade humana.
O trabalho de evangelização não quer apenas repetir o que já foi feito como proclamação de verdades doutrinais. Deve-se proclamar, sim, a chegada do Reino de Deus e caracterizá-lo como o fez Jesus, como novas relações estabelecidas entre todos, pois todos são irmãos e filhos de Deus. A proclamação da chegada do Reino não isenta a Igreja do envolvimento na construção de uma nova sociedade, de um mundo novo onde todos possam ser integrados, a começar pelos últimos. Por isso, a proclamação da dignidade de toda pessoa humana, do estabelecimento da justiça nas relações sociais e da necessária construção da paz no respeito a todos é parte integrante do trabalho eclesial em seu serviço ao mundo, realizado em espírito de diálogo e como contribuição para o desenvolvimento dos povos.
Bibliografia
FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 24 nov. 2013.
PAULO VI. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, 8 dez. 1975.
PAULO VI. Carta Encíclica Populorum Progressio, 26 mar. 1967.
VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, 7 dez. 1975.

Antonio Manzatto

Presbítero da Arquidiocese de São Paulo, doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina (1993) e professor titular da Faculdade de Teologia da PUC-SP. E-mail: amanzatto@pucsp.br


Fraternidade: Igreja e sociedade – uma perspectiva bíblico-teológica

Celso Loraschi
  
A obra de Lucas (Evangelho e Atos dos Apóstolos) oferece elementos inspiradores para o tema proposto pela Campanha da Fraternidade neste ano de 2015. A proposta de Jesus de Nazaré assumida pelas comunidades cristãs primitivas precisa ser permanentemente resgatada pela Igreja, tendo em vista a sua missão evangelizadora em cada contexto histórico-cultural. 
O que mais falta aos homens da Igreja é o Espírito de Cristo, a humildade, o despojamento de si mesmo, a acolhida desinteressada, a capacidade de ver o melhor do outro. Nós temos medo, queremos manter o que caducou, porque disso temos o hábito, queremos ter razão contra os outros. Dissimulamos, sob o vocabulário de humildade estereotipada, o espírito de orgulho e de poder. Brincamos de pôr a vida à parte. Da Igreja fizemos uma organização como as outras. Empregamos todas as nossas forças para organizá-la e agora as empregamos para fazê-la funcionar. E ela caminha mais ou menos, menos do que mais, mas caminha. O problema é que ela caminha como uma máquina, e não como a vida.
Essa afirmação do patriarca ecumênico de Constantinopla, Atenágoras, feita há mais de quatro décadas, possui caráter exortativo também para a Igreja na atualidade. Por aquela mesma época, o Concílio Vaticano II, por meio da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, formulou princípios orientadores para a missão da Igreja num mundo em acelerada transformação. De lá para cá, foram inúmeras as iniciativas, em todos os âmbitos, para organizar uma Igreja mais humana e solidária, respondendo aos clamores da sociedade, especialmente das pessoas abandonadas.
Peregrina neste mundo, a Igreja precisa avançar sempre mais, rompendo com a tentação de acomodar-se. E para avançar com liberdade evangélica, há necessidade de abandono de tudo o que a impede de ser verdadeiramente discípula missionária do Senhor. O documento da CNBB n. 100 – Comunidade de comunidades: uma nova paróquia –chama-nos à conversão pastoral e nos orienta a sair “de uma Igreja distante, burocrática e sancionadora” para uma Igreja mais evangélica, comunitária, participativa, realista e mística (n. 37). O papa Francisco, atento às demandas que emergem das comunidades pelo mundo afora, abraçou essa causa com determinação. Seus ensinamentos, corroborados por seu testemunho, inspiram-se na prática da Igreja das origens, seguidora de Jesus Cristo, servidora do seu evangelho e, por isso mesmo, promotora da vida digna sem exclusão. A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium apresenta o caminho a ser seguido pela Igreja em sua obra evangelizadora no mundo atual. É a proposta do evangelho que precisa ser retomada com coragem. “A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4,43); trata-se de amar a Deus que reina no mundo. À medida que ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos” (EG 180).
Nesse sentido, propõe-se aqui uma reflexão sobre o tema da Campanha da Fraternidade numa perspectiva bíblico-teológica, buscando compreender a dimensão social da fé cristã assumida pelas primeiras comunidades cristãs. Para isso, toma-se a obra de Lucas como referência, pontuando alguns aspectos.
1. A tradição do Êxodo e da profecia
Segundo Lucas, o Primeiro Testamento culmina com a vinda de João Batista. Com Jesus, inicia-se o tempo do anúncio do Reino de Deus: “A Lei e os Profetas chegaram até João. Daí em diante, o Reino de Deus é anunciado, e todos se esforçam para entrar nele a qualquer custo” (Lc 16,16).
A pregação de João Batista se dá no deserto. Preparando o caminho do Senhor, oferece ao povo um batismo de arrependimento. Também Jesus chegou da Galileia para ser batizado (Mc 1,2-11). O pano de fundo dessa apresentação é a tradição do Êxodo, acontecimento fundador do povo de Israel e paradigma para as comunidades em permanente caminhada rumo à terra sem males. Fome e sede marcam essa caminhada: fome e sede de pão, de justiça, de fraternidade e de paz; fome de Deus. O deserto é o lugar teológico aonde Deus leva seu povo para seduzi-lo e falar-lhe ao coração (Os 2,16). Êxodo, deserto, entrada na terra constituem o itinerário da pessoa e da comunidade.
Jesus optou por esse caminho exodal. Não fugiu do mundo. Pelo contrário, “crescendo no meio de uma realidade conflitante de exploração econômica, de convulsões sociais, de desintegração crescente das instituições, de explosões messiânicas, Jesus, unido ao Pai, torna-se aluno dos fatos, descobre dentro deles a chegada da hora de Deus” (MESTERS, [1985?]). Desde o início de seu ministério público, rompe com o poder que escraviza, em sua tríplice dimensão – econômica, política e religiosa (Lc 4,1-13) –, e assume a causa da libertação dos pobres, presos, cegos e oprimidos (Lc 4,18-19).
É o início de uma grande caminhada, na qual Jesus, fiel à tradição profética, se posiciona com convicção e coragem a favor do próximo necessitado. A parábola do samaritano solidário (Lc 10,25-37) ilustra bem a opção feita pelo próprio Jesus, modelo para todos os que o seguem. Diante da preocupação do doutor da lei a respeito da “vida eterna”, ele indica o caminho que promove a vida sem exclusão já neste mundo. O centro da parábola é “um homem”, uma pessoa sem nome, na qual se identificam todas as pessoas em situações de necessidade. Um homem vítima de assalto, semimorto, abandonado… Jesus revela, nessa parábola, aguda percepção da realidade social. Denuncia o sistema de exclusão e subverte os valores estabelecidos pelos senhores do Templo, aqui representados pelo sacerdote e pelo levita. Ambos “viram” o homem abandonado e ambos “passaram adiante”. Contrariamente age o samaritano, pertencente a um povo odiado pela elite religiosa judaica, idealizadora do sistema do puro e do impuro.
A parábola reflete a prática cotidiana de Jesus de Nazaré. A sua vida foi pautada por atitudes de amor e solidariedade. Movimenta-se segundo o Espírito que se desdobra em sensibilidade, carinho, acolhida, perdão, cuidado e indignação. Em todos os lugares, suas palavras e ações são portadoras de liberdade e vida para os possessos das ideologias dominantes, para os doentes e enfermos; constituem proposta de inclusão dos marginalizados: pobres, mulheres, pecadores, estrangeiros…
Jesus não é um ser etéreo, que se movimenta a igual distância de todos os grupos e conflitos e exigências da época. Participa e toma posição, e o faz a partir de um “lugar social” bem preciso, tendo em conta os interesses contrapostos, discernindo as necessidades autênticas e, sobretudo, definindo-se diante da questão vital: a instauração de sociedade outra, diferente… (ECHEGARAY, 1984).
Com essa opção definida, Jesus vai às sinagogas (de Cafarnaum: 4,31; a outras sinagogas da Galileia: 4,44; 6,6; no caminho para Jerusalém: 13,10); entra nas cidades e aldeias: 5,12; 8,1; 10,38; 13,22 (de Cafarnaum: 4,31; 7,1; dirige-se a Naim: 7,11; decide resolutamente ir a Jerusalém: 9,51; entra em Jericó: 19,1; em Betfagé e Betânia: 19,29; em Jerusalém: 19,41); nas casas (de Pedro: 4,38; de Levi: 5,29; de fariseus: 7,36; 11,37; 14,1; de Jairo: 8,41; de Marta e Maria; de Zaqueu: 19,1); caminha pelas ruas: 5,27; pelos campos: 6,1; pelas planícies: 6,17; 9,37; à margem do lago de Genesaré: 5,1; sobe a uma barca: 8,22; atravessa para a outra margem: 8,26; realiza uma viagem pedagógica da Galileia para Jerusalém: 9,51.57; 10,38; 11,1; sempre a caminho: 13,22; 17,11; envia os discípulos, adiante de si, por todas as cidades e lugares: 10,1;  entra no Templo: 19,45.47; 20,1. Retira-se frequentemente para rezar no deserto: 4,1; na montanha: 6,12; 9,28; no monte das Oliveiras: 22,39; em certo lugar: 11,1; reza a sós com os discípulos: 9,18; ensina os discípulos a rezar: 11,2…
2. Movido pela misericórdia
O levita e o sacerdote, na fidelidade às leis de pureza impostas pelo sistema religioso oficial, fazem-se estranhos à pessoa abandonada à beira do caminho. O samaritano, porém, movido por compaixão, faz-se próximo dela e lhe dedica seu tempo, suas habilidades e seus bens.
Jesus propõe um caminho para além do legalismo excludente. A religião vivida por Jesus expressa-se efetiva e afetivamente pelo amor incondicional ao próximo, seja ele desta ou daquela tradição cultural. A misericórdia derruba preconceitos, encurta as distâncias, aproxima os diferentes, vê a necessidade do outro, vence o ódio, promove a reconciliação, cura e liberta. A misericórdia é o princípio pelo qual a Igreja deve pautar sua missão como promotora de fraternidade e vida no mundo.
Movido pela misericórdia, Jesus vai ao encontro também dos ricos e os acolhe, oferecendo-lhes a oportunidade de um novo caminho. Muitos não conseguem abandonar suas seguranças econômicas, especialmente quando justificados por uma teologia que interpreta a riqueza como bênção divina (Lc 18,18-23). Mas há outros, como se constata na história, que se deixam transformar pelo evangelho a ponto de mudar radicalmente a sua vida.
Com a visita que Jesus fez em sua casa, Zaqueu toma consciência de sua real situação (Lc 19,1-10). Enriquecera aproveitando-se de sua função de chefe de cobradores de impostos, à custa do empobrecimento do povo. Somente após o compromisso assumido por Zaqueu de restituir o que roubou é que Jesus lhe garante: “Hoje a salvação chegou a esta casa” (19,9). A redenção do dinheiro se dá quando é administrado como um meio para a promoção da justiça social. Jesus tem clareza e convicção sobre a finalidade dos bens materiais. Por isso denuncia veementemente a avareza (16,14-15), a insensibilidade dos ricos (16,19-31), a insensatez do acúmulo (12,16-21), o apego aos bens (18,9-23); ensina aos discípulos a respeito do verdadeiro uso da riqueza (16,9-13), o sentido do desapego (18,24-30), bem como a função de animar o projeto da partilha social (9,10-17).
O pedido de Jesus “dai-lhes vós mesmos de comer” envolve tanto a cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres, como também os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as misérias muito concretas que encontramos. Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal interpretada, a palavra “solidariedade” significa muito mais do que alguns atos esporádicos de generosidade; supõe a criação de uma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns (EG 188).
3. A missão da Igreja
A missão que Jesus confere aos Doze (Lc 9,1-6) é de continuidade de sua própria missão. Consiste fundamentalmente no anúncio do Reino de Deus corroborado por sinais de libertação e curas: “Deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demônios, e para curar enfermidades” (9,1). O campo da missão são as casas e as cidades. Da mesma forma, o envio dos Setenta (ou setenta e dois) discípulos (10,1-12), indicação de universalidade. Enquanto os Doze representavam o novo Israel, os Setenta representam a nova humanidade. Para os judeus, setenta era o número de nações no mundo. Portanto, o conhecimento da boa-nova de Jesus é um direito de todos os povos.
Os portadores do evangelho devem pôr-se a caminho, “de dois a dois”, com espírito de equipe e sentido comunitário, numa condição de total desapego, a fim de que nada impeça a liberdade dentro da qual Jesus se movimentou, sob a força do Espírito. Em sua maneira de se apresentar, de vestir-se e se relacionar, todos poderão testemunhar sua solidariedade com os pobres e a autenticidade da mensagem que transmitem.
Como se pode traduzir hoje esse espírito de Jesus na sociedade de bem-estar? Não simplesmente recorrendo a um traje que nos identifique como membros de uma instituição religiosa ou responsáveis por um cargo na Igreja. Precisamos, cada um de nós, rever com humildade que nível de vida, que comportamentos, que palavra, que atitude nos identificam melhor com os últimos (PAGOLA, 2012, p. 174).
Como “cordeiros entre lobos”, com simplicidade e mansidão, sem dever nada a ninguém a não ser o amor mútuo (cf. Rm 13,8), os evangelizadores enfrentarão toda espécie de conflitos sem perder a paz. Aliás, a paz é o primeiro sinal do Reino de Deus: “Em toda casa que entrardes, dizei primeiro: ‘Paz a esta casa!’” (10,5). A paz que o evangelho propõe nasce da convicção de que todos somos irmãos, amados por Deus Pai de modo gratuito, e, como decorrência, também devemos nos amar gratuitamente (15,11-32).
4. As comunidades de Lucas
 Lucas escreve pelo final do século I em Antioquia da Síria, a terceira cidade do Império Romano, grande centro comercial, formada por povos de diversas culturas. As tradições judaica, grega e romana se entrelaçavam. As comunidades cristãs aí organizadas sofriam a influência de mentalidades diversas. O evangelho vem ajudá-las a discernir o verdadeiro caminho da vida que o ensinamento e a prática de Jesus revelaram. Uma das tarefas prioritárias assumidas pelo mestre de Nazaré foi a formação dos seus discípulos, que, apesar de o reconhecerem como o Messias, tiveram muitas dificuldades de segui-lo. A mentalidade fechada, nacionalista e fanática, bem como a visão de um messianismo triunfalista, fez que Jesus iniciasse um novo caminho, representado pela viagem da Galileia a Jerusalém, onde vai ser crucificado.
Os discípulos aprenderão nessa caminhada que o seguimento de Jesus se dá não pelos critérios do poder, e sim pelos do serviço, como podemos constatar em Atos dos Apóstolos, o segundo volume da obra de Lucas. Mulheres e homens, impulsionados pelo dom do Espírito Santo, realizam a obra evangelizadora no mundo em tríplice dimensão:
  • A dimensão do tempo: os discípulos anunciam o reino messiânico por meio de “sinais e prodígios” (cf. At 2,22.43; 4,16.30; 5,12; 6,8; 8,6.13; 14,3; 15,12…), reveladores deste tempo favorável de Deus, agindo em favor da vida e salvação de seus filhos e filhas. Jesus é o kairós por excelência. No Evangelho de Lucas, isso está expresso no advérbio de tempo “hoje” (cf. 3,11.22; 4,21; 5,26; 13,22-23; 19,5.9; 23,43). Ele permanece vivo e atuante nas palavras e ações dos seus discípulos e discípulas que se acolhem, se reúnem e se amam fraternalmente. Cada momento, “dia após dia” (At 2,41.47; 4,42…), é tempo decisivo para a difusão da boa-nova de Jesus Cristo salvador. O tempo faz-se pleno!
  • A dimensão do espaço: “Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria e até os confins da terra” (1,8). Esse é o esquema geográfico utilizado por Atos dos Apóstolos para mostrar a caminhada da Palavra, desde a ressurreição de Jesus. Os evangelizadores vão “de lugar em lugar anunciando a boa-nova” (8,4…). A mesma atitude itinerante de Jesus na Palestina é vivida agora pelos seus discípulos. Há um contínuo movimento dos agentes de evangelização, num compromisso missionário, assumido num regime de urgência, preenchendo todos os espaços possíveis com a boa notícia do tempo da salvação de Deus, realizado em Jesus Cristo. Os verbos “prosseguir” (13,51; 16,10.40; 17,10; 18,23…), “levantar-se” (9,6.40; 14,20; 26,16…), “partir” (10,23; 16,10; 18,21…), “embarcar” (13,13; 16,10…) são indicativos desse dinamismo.
  • A dimensão do testemunho: “Recebereis uma força, a do Espírito Santo que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas…”. A palavra grega martyría, frequente em Atos dos Apóstolos, refere-se ao testemunho de Jesus Cristo morto e ressuscitado dado pelos seus seguidores; é argumento de autenticidade da boa notícia acompanhada de sinais e prodígios, conforme cita Pedro em seus discursos querigmáticos: em Jerusalém, após a descida do Espírito Santo (2,32) e após a primeira cura de um deficiente físico (3,15), e na casa de um pagão, Cornélio (10,39-43). Também Paulo, em sua conversão e em suas viagens missionárias: numa sinagoga em Antioquia da Pisídia (13,46) e em Jerusalém, diante dos judeus (22,20) e diante do rei Agripa (26,12-23). O próprio Senhor aparece a Paulo e lhe dá a missão de testemunhá-lo em Jerusalém e em Roma (23,11).
5. Na força do Espírito Santo
Assim como Jesus foi gerado e conduzido pelo Espírito Santo, também a sua Igreja. É dom concedido às pessoas individualmente e às comunidades dos crentes: a Pedro (4,8), a Estêvão (6,5), a Paulo (9,17), a Barnabé (11,24), a Judas e Silas (15,32)… Ele se manifesta na comunidade reunida (4,31), nas igrejas da Judeia, Galileia e Samaria (9,31). Acontecem vários Pentecostes: aos judeus em Jerusalém (2,1-13), aos pagãos na casa de Cornélio (10,44-48), aos discípulos de João na cidade de Éfeso (19,1-7)…
O Espírito Santo acompanha os evangelizadores, animando, ajudando a discernir, ampliando, fortalecendo, impedindo, advertindo, sugerindo, arrebatando… As comunidades seguidoras de Jesus podem contar com a mesma dýnamis do Espírito que animava a Jesus de Nazaré. O dom gratuito da salvação, dado por Deus Pai em Jesus Cristo, morto e ressuscitado, na força do Espírito Santo, é destinado a todas as pessoas de todas as raças e culturas. A compreensão desta novidade leva os seguidores de Jesus a assumir uma vida de total coragem e liberdade interior. Anunciam a Palavra de Deus com toda intrepidez (em grego, parrêsía: 4,13.31; 9,27-28; 13,46; 14,3; 18,25-26…), enfrentando toda espécie de conflitos. Começa no centro religioso judaico, que culmina com o martírio de Estêvão (7,54-60); Tiago, irmão de João, também é assassinado por capricho de Herodes (12,2). São várias as acusações e prisões a que são submetidos os que seguem a Jesus (4,1ss; 5,17ss; 12,1ss; 16,16ss; 18,12ss; 21,27ss…). Os discípulos missionários, de lugar em lugar, enfrentam com bom ânimo (euthymía) os sofrimentos decorrentes da missão que receberam de Jesus.
O anúncio do Reino de Deus provoca conflitos, porque se opõe a tudo o que prejudica a dignidade e a fraternidade; porque implica acolhida, diálogo e superação das barreiras sexuais (6,1-6), raciais e culturais (8,26-40; 10,34-35; 15,1ss); porque não suporta atitudes de mentira e corrupção, como a de Ananias e Safira, em Jerusalém (5,1-11); de manipulação do povo, como a de Simão, em Samaria (8,9-24); de tentativa de impedir a graça de Deus, como a de Elimas em Pafos, na ilha de Chipre (13,4-12); de exploração dos dons de uma jovem escrava por parte de seus patrões, em Filipos (16,16-18); de uso do nome de Jesus para proveito próprio, como a dos exorcistas judeus, em Éfeso (19,11-20); de exploração da religiosidade popular, como a dos comerciantes, também em Éfeso (19,23-40)… Há conflitos também com intelectuais gregos, que zombam de Paulo diante do anúncio da ressurreição de Jesus, em Atenas (17,32-33) e em diversos lugares, e com grupos judaicos, devido à sua mentalidade exclusivista e diante dos novos parâmetros de interpretação da Sagrada Escritura (2,12-36; 7,1-54; 10,1-43…).
O Reino de Deus sofre violências. É o selo de autenticação da prática transformadora de Jesus, continuada pelas comunidades cristãs de Jerusalém, de Antioquia, de Chipre, de Corinto, de Éfeso, de Derbe, Listra, Icônio… Mesmo que se ressalte a comunidade de Jerusalém como igreja-mãe e modelo para as outras igrejas (2,42-47; 4,32-35 e 5,12-15), cada igreja local é plenamente ekklêsía. Cada igreja vai tendo um jeito próprio de ser, respondendo aos desafios emergentes, sejam eles de ordem econômica, religiosa ou política, buscando encontrar caminhos de vida plena para todas as pessoas. Em outras palavras, cada igreja vai tendo sua organização e autonomia próprias, unidas pelos princípios fundamentais que caracterizam uma comunidade cristã, com base na prática de Jesus de Nazaré, como o princípio da koinonía – pessoas em comunhão fraterna – e o princípio da diakonía: a serviço umas das outras. Ambos os princípios abrem para a missão ad gentes,realizada em mutirão por um grande número de mulheres e homensA obra de Lucas prima pela inclusão de gênero no protagonismo evangelizador.  
 6. Sempre a caminho
As comunidades dos seguidores e seguidoras de Jesus, em Atos dos Apóstolos, são identificadas como “o Caminho” (9,2; 18,24-26; 19,9.23; 22,4; 24,14.22), indicação de uma maneira original de viver, com base na fé em Jesus Cristo. Na obra de Lucas, aparecem 75 vezes os termos “caminho/caminhar/andar”. Isso aponta para um dinamismo evangelizador, em permanente atitude de êxodo: de Jerusalém para o mundo; do Templo para as casas; do legalismo excludente para o amor misericordioso e acolhedor; de um único povo da promessa para a promessa de salvação a todos os povos; da uniformidade/rigidez de doutrina para o diálogo com as diversas culturas; do poder do dinheiro e da eloquência para o amor eficaz a partir dos pequenos e pobres; do individualismo para a partilha comunitária e o serviço mútuo; da timidez, do medo, do comodismo e do desânimo para a intrepidez, a ousadia, o bom ânimo; do centralismo religioso para a autonomia das comunidades na obediência ao projeto do Reino…
Enfim, acolhendo a advertência do patriarca Atenágoras, com a qual se abriu este artigo, a Igreja, em sua relação com a sociedade, é desafiada a caminhar “menos como máquina e mais como a vida”. O evangelho requer atitudes e estruturas que visibilizem e autentiquem o anúncio. Além do mais, o evangelho é a própria pessoa de Jesus, cujo modelo de vida deve inspirar os seus seguidores em todos os tempos. Queira Deus que a Igreja possa testemunhar ao mundo, sedento de vida plena, o que Pedro, junto com João, personalizando as comunidades cristãs, disse ao paralítico colocado à porta do Templo: “Olha para nós… Não tenho nem ouro nem prata, mas o que tenho eu te dou: em nome de Jesus Cristo nazareno, levanta-te e anda!” (At 3,1-8).
Bibliografia
CEBI. Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulus, 1999. (Roteiros para Reflexão, VIII.)
CNBB. Comunidade de comunidades: a conversão pastoral da paróquia. São Paulo: Paulinas, 2014. (Documentos da CNBB, 100.)
COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos. Petrópolis: Vozes; São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista; São Leopoldo: Sinodal, 1989. (Comentário Bíblico, v. I e II.)
FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus: Loyola, 2013. (Documentos do Magistério.)
HECHEGARAY, Hugo. A prática de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1984.
MESTERS, Carlos. A prática libertadora de Jesus. Belo Horizonte: Cebi, [1985?].
PAGOLA, José A. O caminho aberto por Jesus: Lucas. Petrópolis: Vozes, 2012.
RICHARD, Pablo. O movimento de Jesus depois da ressurreição: uma interpretação libertadora dos Atos dos Apóstolos. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2001.
RIUS-CAMPS, Josep. O Evangelho de Lucas. São Paulo: Paulus, 1995.

Celso Loraschi

Celso Loraschi, mestre em Teologia Dogmática com concentração em Estudos Bíblicos, professor de Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos na Faculdade Católica de Santa Catarina (Facasc). E-mail: loraschi@facasc.edu.br


quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Participação Social, o novo fantasma das elites

Ladislau Dowbor
Adital

Reação feroz dos conservadores ao decreto de Dilma revela incapacidade de compreender sociedades atuais e interesse de manter política como monopólio dos "representantes”
O texto na nossa Constituição é claro, e se trata nada menos do que do fundamento da democracia: "Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Está logo no artigo 1º, e garante portanto a participação cidadã através de representantes ou diretamente. Ver na aplicação deste artigo, por um presidente eleito, e que jurou defender a Constituição, um atentado à democracia não pode ser ignorância: é vulgar defesa de interesses elitistas por quem detesta ver cidadãos se imiscuindo na política. Preferem se entender com representantes.
A democracia participativa em nenhum lugar substituiu a democracia representativa. São duas dimensões de exercício da gestão pública. A verdade é que todos os partidos, de todos os horizontes, sempre convocaram nos seus discursos a que população participe, apoie, critique, fiscalize, exerça os seus direitos cidadãos. Mas quando um governo eleito gera espaços institucionais para que a população possa participar efetivamente, de maneira organizada, os agrupamentos da direita invertem o discurso.
É útil lembrar aqui as manifestações de junho do ano passado. As multidões que manifestaram buscavam mais quantidade e qualidade em mobilidade urbana, saúde, educação e semelhantes. Saíram às ruas justamente porque as instâncias representativas não constituíam veículo suficiente de transmissão das necessidades da população para a máquina pública nos seus diversos níveis. Em outros termos, faltavam correias de transmissão entre as necessidades da população e os processos decisórios.
Os resultados foram que se construíram viadutos e outras infraestruturas para carros, desleixando o transporte coletivo de massa e paralisando as cidades. Uma Sabesp vende água, o que rende dinheiro, mas não investe em esgotos e tratamento, pois é custo, e o resultado é uma cidade rica como São Paulo que vive rodeada de esgotos a céu aberto, gerando contaminação a cada enchente. Esta dinâmica pode ser encontrada em cada cidade do país onde são algumas empreiteiras e especuladores imobiliários que mandam na política tradicional, priorizando o lucro corporativo em vez de buscar o bem estar da população.
Participação funciona. Nada como criar espaços para que seja ouvida a população, se queremos ser eficientes. Ninguém melhor do que um residente de um bairro para saber quais ruas se enchem de lama quando chove. As horas que as pessoas passam no ponto de ônibus e no trânsito diariamente as levam a engolir a revolta, ou sair indignadas às ruas. Mas o que as pessoas necessitam é justamente ter canais de expressão das suas prioridades, em vez de ver nos jornais e na televisão a inauguração de mais um viaduto. Trata-se aqui, ao gerar canais de participação, de aproximar o uso dos recursos públicos das necessidades reais da população. Inaugurar viaduto permite belas imagens; saneamento básico e tratamento de esgotos muito menos.
Mas se para muitos, e em particular para a grande mídia, trata-se de uma defesa deslavada da política de alcova, para muitos também se trata de uma incompreensão das próprias dinâmicas mais modernas de gestão pública.
Um ponto chave, é que o desenvolvimento que todos queremos está cada vez mais ligado à educação, saúde, mobilidade urbana, cultura, lazer e semelhantes. Quando as pessoas falam em crescimento da economia, ainda pensam em comércio, automóvel e semelhantes. A grande realidade é que o essencial dos processos produtivos se deslocou para as chamadas políticas sociais. O maior setor econômico dos Estados Unidos, para dar um exemplo, é a saúde, representando 18,1% do PIB. A totalidade dos setores industriais nos EUA emprega hoje menos de 10% da população ativa. Se somarmos saúde, educação, cultura, esporte, lazer, segurança e semelhantes, todos diretamente ligados ao bem estar da população, temos aqui o que é o principal vetor de desenvolvimento. Investir na população, no seu bem estar, na sua cultura e educação, é o que mais rende. Não é gasto, é investimento nas pessoas.
A característica destes setores dinâmicos da sociedade moderna é que são capilares, têm de chegar de maneira diferenciada a cada cidadão, a cada criança, a cada casa, a cada bairro. E de maneira diferenciada porque no agreste terá papel central a água; na metrópole, a mobilidade e a segurança e assim por diante. Aqui funciona mal a política centralizada e padronizada para todos: a flexibilidade e ajuste fino ao que as populações precisam e desejam são fundamentais, e isto exige políticas participativas. Produzir tênis pode ser feito em qualquer parte do mundo, coloca-se em contêiner e se despacha para o resto do mundo. Saúde, cultura, educação não são enlatados que se despacham. São formas densas de organização da sociedade.
Eu sou economista, e faço as contas. Entre outras contas, fizemos na Pós-Graduação em Administração da PUC-SP um estudo da Pastoral da Criança. É um gigante, mais de 450 mil pessoas, organizadas em rede, de maneira participativa e descentralizada. Conseguem reduzir radicalmente, nas regiões onde trabalham, tanto a mortalidade infantil como as hospitalizações. O custo total por criança é de 1,70 reais por mês. A revista Exame publica um estudo sobre esta Organização da Sociedade Civil (OSC), porque tenta entender como se consegue tantos resultados com tão poucos recursos. Não há provavelmente instituição mais competitiva, mais eficiente do que a Pastoral, se comparada com as grandes empresas, bancos ou planos privados de saúde. Cada real que chega a organizações deste tipo se multiplica.
A explicação desta eficiência é simples: cada mãe está interessada em que o seu filho não fique doente, e a mobilização deste interesse torna qualquer iniciativa muito mais produtiva. Gera-se uma parceria em que a política pública se apoia no interesse que a sociedade tem de assegurar os resultados que lhe interessam. A eficiência aqui não é porque se aplicou a última recomendação dos consultores em kai-ban, kai-zen, just-in-time, lean-and-mean, TQM e semelhantes, mas simplesmente porque se assegurou que os destinatários finais das políticas se apropriem do processo, controlem os resultados.
As organizações da sociedade civil têm as suas raízes nas comunidades onde residem, podem melhor dar expressão organizada às demandas, e sobre tudo tendem a assegurar a capilaridade das políticas públicas. Nos Estados Unidos, as OSCs da área da saúde administram grande parte dos projetos, simplesmente porque são mais eficientes. Não seriam mais eficientes para produzir automóveis ou represas hidroelétricas. Mas nas áreas sociais, no controle das políticas ambientais, no conjunto das atividades diretamente ligadas à qualidade do cotidiano, são simplesmente indispensáveis. O setor público tem tudo a ganhar com este tipo de parcerias. E fica até estranho os mesmos meios políticos e empresariais que tanto defendem as parceiras público-privadas (PPPs), ficarem tão indignados quando aparece a perspectiva de parcerias com as organizações sociais. O seu conceito de privado é muito estreito.
Eu, de certa forma graças aos militares, conheci muitas experiências pelo mundo afora, trabalhando nas Nações Unidas. Todos os países desenvolvidos têm ampla experiência, muito bem sucedida, de sistemas descentralizados e participativos, de conselhos comunitários e outras estruturas semelhantes. Isto não só torna as políticas mais eficientes, como gera transparência. É bom que tanto as instituições públicas como as empresas privadas que executam as políticas tenham de prestar contas. Democracia, transparência, participação e prestação de contas fazem bem para todos. Espalhar ódio em nome da democracia não ajuda nada.

Para os que querem deixar o Brasil

Leonardo Boff
Adital

É espantoso ler nos jornais e mensagens nas redes sociais e mesmo em inteiros youtubes a quantidade de pessoas, geralmente das classes altas ou os ditos "famosos” que lhes custa digerir a vitória eleitoral da reeleita Dilma Rousseff do PT. Externam ódio e raiva, usando palavras tiradas da escatologia (não da teológica que trata dos fins últimos do ser humano e do universo) e da baixa pornografia para insultar o povo brasileiro, especialmente, os nordestinos.
Estas pessoas não vivem no Brasil, mas, em geral, no Leblon e em Ipanema ou nos Jardins da cidade de São Paulo onde se albergam: em sua maioria, os pertencentes às classes opulentas (aquelas 5 mil famílias que, segundo M.Porchmann, detém 43% do PIB nacional). Muitas delas não se sentem povo brasileiro. Externam até vergonha. Mas estão aqui porque neste país é mais fácil enricar, embora o desfrute mesmo é em feito em Miami, Nova York, Paris ou Londres, pois muitos deles têm lá casas ou apartamentos.
Alguns mais exacerbados, mas com parquíssima audiência, sugerem até separar o Brasil em dois: o sudeste rico de um lado e o resto (para eles, o resto mesmo) do outro, especialmente o Nordeste.
Acresce a isso o Parlamento brasileiro, a maioria eleita com muito dinheiro, que mal representa o povo. Finge que escutou o clamor dos ruas em junho de 2013 demandando reformas, especialmente, na política, no sistema de educação e de saúde e uma melhor mobilidade urbana e não em último lugar a segurança e a transparência na coisa pública. Mas já esqueceu tudo. Rejeitou o projeto do governo, no rescaldo da reeleição, que visava ordenar e dar mais espaço à participação dos movimentos sociais na condução da política nacional, respeitadas as instituições consagradas pela Constituição.
Tal fato nos remete ao que Darcy Ribeiro diz em seu esplêndido livro que deveria ser lido em todas as escolas, "O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”(1995). Aí diz o grande antropólogo, indigenista, político e educador:”O ruim no Brasil e efetivo fator do atraso, é o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus…O que houve e há é uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente”(p.446).
Esta afirmação nos concede entender porque a presidenta Dilma quer uma reforma política que não venha de cima, do Congresso, porque este sempre se oporá ao que possa contradizer os seus indecentes privilégios. Deve partir de baixo, ouvindo os reclamos do povo brasileiro. Quem aprendeu em 500 anos a sobreviver na pobreza senão na miséria, colheu muita experiência e sabedoria a ser testemunhada e repercutida na nova ordenação político-social do Brasil. Ouvi de um sacerdote que viveu sempre na favela:”há um evangelho escondido no coração do povo humilde e importa que o leiamos e escutemos”. Vale a mesma coisa para as várias reformas desejadas pela maioria da população: auscultar o que se aninha no coração do povo e dos invisíveis.
Podemos tolerar a arrogância e a resistência dos poderosos e dos parlamentares, o que não podemos é defraudar a esperança de todo um povo. Ele não merece isso depois de tanto suor, sacrifícios e lágrimas. Ele precisa voltar às ruas e renovar com mais contundência e ordenadamente o que irrompeu em junho do ano passado. O feijão só cozinha bem em panela de pressão. Da mesma forma, o parlamento abandona sua inércia quando é posto sob pressão, como se constatou no ano passado.
Voltemos a Darcy Ribeiro, um dos que melhor estudou e compreendeu a singularidade do povo brasileiro. Uma coisa são os povos transplantados como nos USA, no Canadá e na Austrália. Eles reproduziram os moldes dos países europeus de onde vieram. No Brasil foi diferente. Ocorreu uma das maiores miscegenizações da história conhecida da humanidade. Vieram de 60 países diferentes. Misturaram-se entre si índios, afro-descentes, europeus, árabes e orientais. Criaram um novo tipo de gente. Diz Darcy:”o nosso desafio é de reinventar o humano, criando um novo gênero de gentes, diferentes de quantas haja”(p.447). Diz mais:”olhando todas estas gentes e ouvindo-as é fácil perceber que são, de fato, uma nova romanidade, uma romanidade tardia mas melhor, porque lavada em sangue índio e sangue negro”(p.447).
Não me furto em citar estas palavras proféticas com as quais fecha seu livro "O povo brasileiro”: "O Brasil é já a maior das nações neolatinas… Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça, tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor porque incorpora em si mesma mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra”(p.449).
Para os que querem sair do Brasil: fiquem nessa esplêndida Terra e ajudem-nos a construir esse sonho bom.
07/11/2014

Dilma pode escolher: ser Francisco ou Bergóglio?

Saul Leblon
Adital
A história não é fatalidade. Um exemplo de quem mudou suas circunstâncias? O Papa, que deixou de ser Bergóglio para se tornar Francisco

A incerteza que antecede as definições do segundo governo Dilma mantém o Brasil em suspenso à direita e à esquerda.
Mercados financeiros giram feito barata tonta ao sabor dos mais desencontrados boatos.
Vendidos suplicam por um boato baixista; comprados dão a vida por uma puxada nas cotações. Ganha-se na diferença diária entre um zunzum e outro.
Especulações sobre o comando da economia oscilam entre o tudo e o nada, muito pelo contrário.
Há lastro.
É evidente a dúvida e a divergência nos círculos da própria Presidenta e do PT: como negociar sem regredir e, sobretudo, com preservar margem para avançar?
A hipótese de se reeditar o modelo ‘Lula 1.0’, ortodoxo na condução da economia, heterodoxo no fortalecimento ancorado em expansão de salários, emprego e políticas sociais tromba na história.
O quadro de bonança externa que permitiu a relação acomodatícia entre interesses conflitantes não existe mais.
O ciclo acabou na crise de 2008, que levou ao ‘Lula 2.0’ e ao primeiro Dilma, de recortes mais heterodoxos (Leia a análise de Tarso Genro; nesta pág).
Não apenas isso.
O estreitamento da margem de manobra na economia não encontra qualquer compensação no ambiente político.
Dilma sai inequivocamente vitoriosa de uma disputa histórica, marcada pelo confronto feroz entre projetos distintos de país, em meio a uma transição de ciclo econômico global.
A derrota da restauração neoliberal nas urnas brasileiras não encerra o confronto que permanece em aberto em todo o mundo.
Por isso é ilusório imaginar que o terceiro turno desta vez cederá tão cedo ou em troca de pouco.
Não cederá.
A percepção dessa rigidez adiciona tensões imagináveis na atormentada busca de uma ordenação do próximo governo.
Como honrar a vitória nas urnas e exercer a iniciativa na esfera econômica e social, sem ser emparedado pela roleta do mercado financeiro aqui e lá fora?
O ‘salvacionismo da rendição’ ganha força à medida em que as escolhas giram em falso no relógio do tempo político.
Aqui e ali ouvem-se apelos extremados para Dilma ‘resolver logo’.
O que?
Tudo.
‘Tudo o que o mercado quer’.
Em vão imagina-se que assim haverá a trégua que o comunicado oficial da vitória na noite de 26 de outubro não ensejou.
Setores do PT antigamente identificados com aquilo que se convencionou chamar de ‘paloccismo, que vem a ser o neoliberalismo de estrela na lapela, vendem a ilusão de um apaziguamento.
Em 2006 venderam a Lula a fraude de que se dissesse ‘fui traído’, as capas de ‘Veja’ sobre o dito ‘mensalão’ refluiriam.
O que se deu é sabido.
Dilma sabe que não dá para atender ao apetite pantagruélico e ao mesmo tempo cumprir as obrigações da urna.
Que fazer?
É aconselhável, em primeiro lugar, olhar em volta.
Quem recomenda é o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, em entrevista desta semana a Carta Maior (assista nesta pág.).
A desordem no capitalismo internacional é tão grave que o seu principal bunker financeiro, o FMI, converge rapidamente para se transformar em defensor de incentivos fiscais e do investimento público, aqui demonizados pelos bravos rapazes e moças do jornalismo isento.
Até autoridades da zona do euro, arrasada pelo fracasso desse oximoro, a ‘contração expansiva’, ensaiam mudança de tom.
A busca do impossível –crescer e arrochar— faz água por todas as latitudes.
Ou não será essa impossibilidade metafísica que ordena o ziguezagueante discurso do G-20, reunido na distante Austrália?
Oxímoros -- contradições em seus próprios termos-- refletem o esgotamento de uma agenda.
Aquela que levou o mundo a transitar da longa convalescença de 2008 direto para uma era de estagnação.
O ‘novo normal’, a perder de vista, sob os timoneiros do arrocho, compõe um cotidiano em que nada se move.
Exceto as curvas da desigualdade, o empoçamento do capital fictício, o fastígio dos paraísos fiscais e a fuga da juventude desempregada para lugar nenhum.
Os dados estão carimbados no rosto de pedra dos participantes do G 20: 75 milhões de jovens nunca encontrarão trabalho em sua vida; o estoque do desemprego mundial requer a criação de 200 milhões de vagas. Mas a Europa continua a despejar gente na rua, enquanto nos EUA cresce o emprego precário e o rendimento da classe média hiberna há 15 anos.
Que arranjo ministerial é o mais indicado para enfrentar o terceiro turno do conservadorismo no Brasil, enquanto se espera um alvorecer da longa noite neoliberal?
Trazer o conflito para dentro do governo é uma forma de rachar a frente derrotada em 26 de outubro.
A que custo, porém, sob o chicote do juro alto e do emprego declinante?
Outra hipótese é reformar a bicicleta da correlação de forças pedalando o mais depressa possível para longe da macroeconomia da recessão: baixar juro, usar o dinheiro economizado para obras, coordenar o câmbio, exportar, investir e contratar.
O jogral conservador diz que é o caminho para a morte súbita do governo Dilma.
É melhor morrer em fogo lento? Degrau por degrau na ladeira do desemprego, da erosão salarial e do desacorçoo, até o enterro solene em 2018?
Não há escolha fácil num mundo difícil, assoalhado de chão mole por todos os lados.
Mas a história não é uma ciência exata; por mais que o mercado lhe sonegue esse predicado ela muda sob a ação dos homens e de suas circunstâncias.
Mudanças no exercício do poder podem alterar as circunstancias e tornar possível o impossível.
Um exemplo meramente ilustrativo?
O Papa.
Nos últimos dias, o Papa Francisco foi elogiado por duas estrelas incontestáveis da constelação progressista latino-americana: sua conterrânea argentina, Estela Carloto, líder do movimento das Abuelas de Mayo, que ele recebeu no Vaticano e a seu neto recém localizado; e o brasileiro Pedro Stedile, o indobrável dirigente do MST, um dos convidados do Encontro Mundial de Movimentos Populares, patrocinado pelo Papa, no final do outubro.
A receptividade do anfitrião impressionou o marxista Stédile.
‘O Papa deu uma grande contribuição (ao encontro), com um documento irrepreensível, mais à esquerda do que muitos de nós; em 2.000 anos, nenhum Papa jamais organizou uma reunião desse tipo com movimentos sociais’, atestou Stédile.
Antes de afrontar dois mil anos de história, o sucessor de Bento XVI --o doutrinário conservador Ratzinger, que renunciou em fevereiro de 2013--, já havia impressionado uns e surpreendido outros ao deflagrar uma devassa nos círculos de poder santo.
Sem cerimonia, Francisco afastou chefões acusados de abusos sexuais; criou comissões investigativas para devassar as sacristias do poder; abateu corruptos abrigados em batinas purpuras; degredou veneráveis incrustrados na burocracia do Banco do Vaticano, de laços conhecidos com o crime organizado italiano.
Nesta 4ª feira, outras vozes da esquerda regional rasgaram elogios ao Papa por uma nova decisão corajosa.
Francisco determinou que o Vaticano abra seus arquivos secretos quando isso for do interesse das investigações sobre desaparecidos políticos durante a ditadura militar argentina.
Uma reforma jurídica do Estado do Vaticano foi determinada pelo Papa para legalizar essa ruptura.
Sua orientação atinge a ultraconservadora hierarquia do catolicismo argentino.
Ela já começou a colaborar com as Abuelas de Mayo, na localização de filhos de desaparecidos políticos, vítimas da ditadura que entre 1976 a 1983 matou cerca de 30 mil argentinos.
A decisão de abrir os arquivos da Igreja tem um significado político especial para o Papa Francisco.
Quando o nome do Cardeal Arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, 76 anos, foi consagrado em março de 2013 pelo Concílio romano, a reação predominante na esquerda latino-americana – inclua-se nisso Carta Maior—foi de desalento e apreensão.
O 265° Papa de Roma, o primeiro latino-americano a ocupar o trono de Pedro, não oferecia motivos para comemorações.
A própria Estela Carloto desabafou na época que o sucessor do Papa Bento XVI fazia parte da "Igreja que escureceu o país” durante a ditadura.
‘É verdade, não sentimos muita alegria com a sua eleição; nunca tínhamos ouvido Bergoglio fazer menção aos desaparecidos, nem dar qualquer apoio à busca pelas nossas crianças’, admitiu ela após o encontro efusivo no Vaticano, onde fez uma autocrítica cercada de elogio ao renascido conterrâneo.
Não apenas omissão. A principal acusação contra o bispo Bergoglio era de cumplicidade.
Ele poderia, mas nunca facilitou, por exemplo, a reunião das abuelas desesperadas com o Papa.
O primeiro encontro delas com o Sumo Pontífice, em 1980, deu-se no Brasil e só aconteceu por interferência de religiosos brasileiros.
No livro "El Silencio”, o premiado jornalista argentino, Horacio Verbitsky, recolheu depoimentos e reconstituições que lançam sombras ainda mais densas sobre o passado do cardeal Bergoglio.
Sabe-se, por exemplo, que no dia em que a ‘fumata bianca’ do Vaticano anunciou o ‘habemus papam’ e em seguida emergiu a figura do cardeal argentino no balcão , Graciela Yorio esmurrou as paredes de seu apartamento, a 11.200 quilômetros de distância, em Buenos Aires.
O relato foi estampado nos jornais argentinos e também na Folha de S. Paulo.
A revolta deve-se a uma certeza guardada há 36 anos na memória dessa sexagenária.
Em maio de 1976, seu irmão, padre Orlando Yorio, foi delatado à ditadura sedenta e recém-instalada, juntamente com o sacerdote Francisco Jalics, que hoje mora na Alemanha.
Os dois religiosos ficaram cinco meses nas mãos dos militares. Incomunicáveis, na temível Escola Mecânica da Marinha, adaptada para ser a máquina de moer ossos do regime.
Por omissão ou conivência ativa, atribui-se ao então cardeal Bergoglio — então com cerca de 40 anos, líder conservador dos jesuítas argentinos—um pedaço da responsabilidade por essas prisões.
Essa é a convicção de Graciela, baseada no que ouviu do irmão, falecido em 2000, militante da Teologia da Libertação como Jalics, que se diz reconciliado com Francisco.
Não faltaram vozes progressistas a rejeitar esse enredo macabro, dando testemunho da retidão discreta do conservador Bergóglio sob o terror militar.
A corajosa abertura dos arquivos do Vaticano agora poderá dar-lhe o salvo conduto definitivo afastando sua biografia da sombra desse período.
Mas o fato é que Bergóglio já se reinventou sob o manto de Francisco. Hoje, figura como uma referência sintomática do vento novo que sopra na contracorrente da decadência neoliberal no mundo.
O que teria sido do Papa se mantivesse em Roma a ambiguidade discreta do seu cardinalato na Argentina?
Seria maculado pela reprovação silenciosa de muitos; seria uma figura irrelevante na desordem mundial; seria um pequeno conservador na cena extremada de um mundo em busca de nova identidade e de um ciclo renovador para o desenvolvimento, a vida e a espiritualidade.
Seriam, enfim, tudo o que Francisco decidiu não ser e não é.
O que sobra disso para a pasmaceira de um Brasil que oscila entre um Meirelles ou um Tombini na Fazenda?
Sobra a lição da inexcedível capacidade humana para se reinventar nas amarras das circunstâncias, alterando-as no processo, mesmo sem ignorá-las.
Sobra a hipótese de Dilma vestir o manto da Presidência e poder escolher entre ser Bergóglio ou Francisco.
Sobra o espaço das escolhas na história.
Não fosse assim ela não seria história, mas fatalidade.
Leia, abaixo, trechos do ilustrativo discurso do Papa Francisco, em 27 de outubro, na recepção aos participantes do Encontro Mundial de Movimentos Populares, no Vaticano:
‘Obrigado por terem aceitado este convite para debater tantos graves problemas sociais que afligem o mundo hoje (...). Os pobres não só padecem a injustiça, mas também lutam contra ela! Não se contentam com promessas ilusórias, desculpas ou pretextos. Também não estão esperando de braços cruzados a ajuda de ONGs, planos assistenciais ou soluções que nunca chegam ou, se chegam, chegam de maneira que vão em uma direção ou de anestesiar ou de domesticar’
‘( solidariedade) é pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade de vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. É enfrentar os destrutivos efeitos do Império do dinheiro: os deslocamentos forçados, as migrações dolorosas, o tráfico de pessoas, a droga, a guerra, a violência e todas essas realidades que muitos de vocês sofrem e que todos somos chamados a transformar. A solidariedade, entendida em seu sentido mais profundo, é um modo de fazer história, e é isso que os movimentos populares fazem’.
‘Queremos que se ouça a sua voz, que, em geral, se escuta pouco. Talvez porque incomoda, talvez porque o seu grito incomoda, talvez porque se tem medo da mudança que vocês reivindicam, mas, sem a sua presença, sem ir realmente às periferias, as boas propostas e projetos que frequentemente ouvimos nas conferências internacionais ficam no reino da ideia’
‘Não é possível abordar o escândalo da pobreza promovendo estratégias de contenção que unicamente tranquilizem e convertam os pobres em seres domesticados e inofensivos.
‘Este encontro nosso responde a um anseio muito concreto, algo que qualquer pai, qualquer mãe quer para os seus filhos; um anseio que deveria estar ao alcance de todos, mas que hoje vemos com tristeza cada vez mais longe da maioria: terra, teto e trabalho. É estranho, mas, se eu falo disso para alguns, significa que o papa é comunista’.
‘Terra, teto e trabalho – isso pelo qual vocês lutam – são direitos sagrados. Reivindicar isso não é nada raro, é a doutrina social da Igreja. Vou me deter um pouco sobre cada um deles, porque vocês os escolheram como tema para este encontro.
‘‘Quando a especulação financeira condiciona o preço dos alimentos, tratando-os como qualquer mercadoria, milhões de pessoas sofrem e morrem de fome. Por outro lado, descartam-se toneladas de alimentos. Isso é um verdadeiro escândalo (...) deixem-me dizer-lhes que, em certos países, e aqui cito o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, "a reforma agrária é, além de uma necessidade política, uma obrigação moral’
‘Eu disse e repito: uma casa para cada família. Mas, além disso, um teto, para que seja um lar, tem uma dimensão comunitária: e é o bairro... e é precisamente no bairro onde se começa a construir essa grande família da humanidade, a partir do mais imediato, a partir da convivência com os vizinhos (...) ali, o espaço público não é um mero lugar de trânsito, mas uma extensão do próprio lar, um lugar para gerar vínculos com os vizinhos’.
‘O desemprego juvenil, a informalidade e a falta de direitos trabalhistas não são inevitáveis, são o resultado de uma prévia opção social, de um sistema econômico que coloca os lucros acima do homem, que considera o ser humano em si mesmo como um bem de consumo, que pode ser usado e depois jogado fora. Isso acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro e não o homem, a pessoa humana’
‘Descartam-se os idosos, porque, bom, não servem, não produzem. Nem crianças nem idosos produzem. Estamos assistindo a um terceiro descarte muito doloroso, o descarte dos jovens. Milhões de jovens (...) aqui na Itália, passou um pouquinho dos 40% de jovens desempregados. Sabem o que significa 40% de jovens? Toda uma geração, anular toda uma geração para manter o equilíbrio. Em outro país da Europa, está passando os 50% ...São dados claros do descarte. Descarte, descarte (...) para poder manter e reequilibrar um sistema em cujo centro está o deus dinheiro, e não a pessoa humana’
‘Um sistema econômico centrado no deus dinheiro também precisa saquear a natureza, saquear a natureza, para sustentar o ritmo frenético de consumo que lhe é inerente’.
‘Alguns de vocês expressaram: esse sistema não se aguenta mais. Temos que mudá-lo, temos que voltar a levar a dignidade humana para o centro, e que, sobre esse pilar, se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos. É preciso fazer isso com coragem, mas também com inteligência. Com tenacidade, mas sem fanatismo (...) Os cristãos têm algo muito lindo, um guia de ação, um programa, poderíamos dizer, revolucionário. Recomendo-lhes vivamente que o leiam, que leiam as Bem-aventuranças que estão no capítulo 5 de São Mateus e 6 de São Lucas (cfr. Mt 5, 3; e Lc 6, 20) e que leiam a passagem de Mateus 25’
‘A perspectiva de um mundo da paz e da justiça duradouras nos exige superar o assistencialismo paternalista, nos exige criar novas formas de participação que inclua os movimentos populares e anime as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com essa torrente de energia moral que surge da incorporação dos excluídos na construção do destino comum. Digamos juntos com o coração: nenhuma família sem moradia, nenhum agricultor sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá’.
http://www.cartamaior.com.br/?/Editorial/Dilma-pode-escolher-ser-Francisco-ou-Bergoglio-/32232

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