segunda-feira, 28 de março de 2011

Interpretação feminista do relato da criação

Leonardo Boff

Teólogo, filósofo e escritor

fonte:  Adital

As teólogas feministas nos despertaram para traços antifeministas no atual relato da criação de Eva (Gn 1,18-25) e da queda original (Gn 3,1-19), o que veio reforçar na cultura o preconceito contra as mulheres. Consoante este relato, a mulher é formada da costela de Adão que, ao vê-la, exclama: "eis os ossos de meus ossos, a carne de minha carne; chamar-se-á varoa (hebraico: ishá) porque foi tirada do varão (ish); por isso o varão deixará pai e mãe para se unir a sua varoa: e os dois serão uma só carne”(2,23-25).

O sentido originário visava mostrar a unidade homem/mulher. Mas, a anterioridade de Adão e a formação a partir de sua costela foi, porém, interpretada como superioridade masculina. O relato da queda soa também antifeminista: "Viu, pois, a mulher que o fruto daquela árvore era bom para comer..tomou do fruto e o comeu; deu-o também a seu marido e comeu; imediatamente se lhes abriram os olhos e se deram conta de que estavam nus”(Gn 3,6-7).

Interpreta-se a mulher como sexo fraco, pois foi ela que caiu na tentação e, a partir daí, seduziu o homem. Eis a razão de seu submetimento histórico, agora ideologicamente justificado: "estarás sob o poder de teu marido e ele te dominará”(Gn 3,16).

Há uma leitura mais radical, apresentada por duas teólogas feministas, entre outras: Riane Eisler (Sacred Pleasure, Sex Myth and the Politics of the Body,1995) e Françoise Gange (Les dieux menteurs 1997) que aqui resumo. Estas autoras partem do dado histórico de que houve uma era matriarcal anterior à patriarcal. Segundo elas, o relato do pecado original seria introduzido no interesse do patriarcado como uma peça de culpabilização das mulheres para arrebatar-lhes o poder e consolidar o domínio do homem. Os ritos e os símbolos sagrados do matriarcado teriam sido diabolizados e retroprojetados às origens na forma de um relato primordial, com a intenção de apagar totalmente os traços do relato feminino anterior. O atual relato do pecado original coloca em xeque os quatro símbolos fundamentais do matriarcado.

O primeiro símbolo atacado é a mulher em si que na cultura matriarcal representava o sexo sagrado, gerador de vida. Como tal ela simbolizava a Grande-Mãe. Agora é feita a grande sedutora.

No segundo, desconstrói-se o símbolo da serpente que representava a sabedoria divina que se renovava sempre como se renova a pele da serpente.

No terceiro, desfigura-se a árvore da vida, tida como um dos símbolos principais da vida, gestada pelas mulheres, agora colocada sob o interdito: "não comais nem toqueis de seu fruto” (3,3).

No quarto, se distorce o caráter simbólico da sexualidade, tida como sagrada, pois permitia o acesso ao êxtase e ao conhecimento místico, representada pela relação homem-mulher.

Ora, o que faz o atual relato do pecado original? Inverte totalmente o sentido profundo e verdadeiro desses símbolos. Desacraliza-os, diaboliza-os e transforma o que era bênção em maldição.

A mulher é eternamente maldita, feita um ser inferior, sedutora do homem que "a dominará” (Gen 3,16). O poder de dar a vida será realizado entre dores (Gn 3,16).

A serpente será maldita, feita inimigo fidagal da mulher que lhe ferirá a cabeça mas que será mordida no calcanhar (Gn 3,15).

A árvore da vida e da sabedoria cai sob o signo do interdito. Antes, na cultura matriarcal, comer da árvore da vida era se imbuir de sabedoria. Agora comer dela significa perigo letal (Gn 3,3).

O laço sagrado entre o homem e a mulher é substituído pelo laço matrimonial, ocupando o homem o lugar de chefe e a mulher de dominada (Gn 3,16).

Aqui se operou uma desconstrução profunda do relato anterior, feminino e sacral. Hoje todos somos, bem ou mal, reféns do relato adâmico, antifeminista e culpabilizador como está no Gênesis.

Por que escrever sobre isso? É para reforçar o trabalho das teólogas feministas que nos apontam quão profundas são as raízes da dominação das mulheres. Ao resgatarem o relato mais arcaico, feminista, elas visam propor uma alternativa mais originária e positiva na qual apareça uma relação nova com a vida, com os gêneros, com o poder, com o sagrado e com a sexualidade.

terça-feira, 22 de março de 2011

Os riscos de defender a vida

Marcelo Barros
Monge beneditino e escritor

fonte: Adital

No norte da África, a juventude e a sociedade civil se levantam contra ditadores e exigem mudanças sociais e políticas. Eles se unem a muita gente que, no mundo inteiro, nos dão testemunho de profunda coragem e doação da vida. Certamente muitos filhos escutam de seus pais argumentos para não irem às ruas protestar. É perigoso! Um artigo na internet ressalta a importância da participação das mulheres nas rebeliões cívicas no Egito e na Líbia. É uma verdadeira profecia de fé e confiança no futuro.

Ainda há quem continua dizendo que este mundo não muda nunca. Sempre foi injusto e sempre o será. Entretanto, cada vez é maior o número de pessoas que, em todos os continentes, se mobilizam para transformar a sociedade e tornar a vida mais feliz para todos.

Foi das aldeias indígenas e das culturas mais oprimidas e sofridas da América Latina que surgiu o conceito de viver em plenitude, ou simplesmente bom viver. Nos Andes, os índios quétchua chamam isso de sumak Kwasay; os Aymara falam em Sumak Kamana. Outros povos têm nomes diferentes para indicar o mesmo valor: o objetivo social e político de garantir uma vida feliz para todos. O Equador e a Bolívia integraram a meta indígena do "Bom Viver” em suas Constituições nacionais, elaboradas pela sociedade civil e votada recentemente por todo o povo.

A sociedade capitalista vê sempre a vida como luta, o trabalho como batalha para ganhar o pão e a relação humana como concorrência. Para uma cultura assim, procurar uma vida feliz parece ser utopia irreal. Entretanto, a maioria das tradições espirituais sempre insistiu que o ser humano tem por vocação a felicidade e a plenitude da vida. Jesus Cristo lutou e deu a vida por isso. Conforme o evangelho, ele teria dito: "Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10, 10).

Na América Latina, muitos irmãos e irmãs deram a vida por este ideal da vida digna e justa para todos. Nesta quinta feira, 24, celebramos o aniversário do martírio de Dom Oscar Romero, arcebispo de El Salvador, assassinado em meio à missa que celebrava em uma capela de hospital (1980). Conheci e convivi com o padre Inácio Ellacuría, um dos jesuítas assassinados em 1989, na mesma cidade. Dois dias depois do assassinato do arcebispo, durante uma celebração em sua memória, o padre Ellacuria afirmou: "Com Dom Romero, a presença de Deus em El Salvador se tornou mais visível”.

Na época em que o arcebispo Oscar Romero e os jesuítas da Universidade de El Salvador foram assassinados, o país estava em uma guerra civil na qual mais de 50 mil pessoas perderam a vida. Desde os anos 80, a imensa maioria dos assassinatos, cometida por militares, nunca foi investigada nem punida. Nos últimos anos, o país começou a mudar. Os esquadrões da morte foram desbaratados, o principal suspeito do assassinato do arcebispo foi julgado e ninguém mais precisa viver exilado para não morrer. O país elegeu como presidente Maurício Funes, jornalista, ex-guerrilheiro e casado com uma brasileira. A partir do respeito à Constituição e de forma democrática, o país tem integrado o grupo de países latino-americanos que caminham para uma autonomia maior e uma libertação da influência norte-americana. Mesmo sem usar o nome de "bolivarianismo”, os salvadorenhos querem formar com todos os povos do continente uma pátria grande.

Eles tornaram Dom Óscar Romero um herói nacional, homenageado como mártir e como exemplo de humanidade. Uma palavra do arcebispo ressoa ainda hoje como apelo à humanidade: "O grande inspirador da libertação de toda humanidade e de cada pessoa humana é Jesus Cristo”. Por sua vida doada e sua ressurreição, ele diz a todos os poderosos da terra: "Vocês não libertam ninguém. Só quem consegue superar o egoísmo e destruir as cadeias que aprisionam o coração humano consegue libertar a si mesmo e aos outros. Se não partir do mais profundo do interior humano, a libertação não é duradoura, nem verdadeira”.

MÊS DA BÍBLIA 2011

Neste ano de 2011, a sugestão é que reflitamos no mês da Bíblia (setembro), o livro do Êxodo, especificamente os capítulos de 15 a 18, que relatam alguns episódios da Caminha do Povo de Deus. E, o tema deste ano é: Travessia – passo a passo, o caminho se faz.  E o lema: Aproximai-vos da presença do Senhor.
           
            Por isso, segue abaixo sugestões de como poderemos contribuir com a comunidade na reflexão a ser feita nesse período.

1)    Fazer um estudo do livro do Êxodo, dando ênfase aos capítulos de 15 a 18, os quais serão trabalhados no mês da Bíblia (setembro) deste ano de 2011.

2)    Procure analisar separadamente os capítulos de 15 a 18 e encontre:
a)    Os limites existentes.
b)    A reação do povo a esses limites.
c)    O Deus que aparece no texto.

Acredito que se fizermos tal análise poderemos concretamente reavivar os animadores de círculos bíblicos.


Abraços e bom proveito
Luiz Marles

quarta-feira, 16 de março de 2011

As mulheres não são homens

 


UMA HOMENAGEM ÀQUELAS QUE VERDADEIRAMENTE COMANDAM O UNIVERSO
Por Boaventura de Sousa Santos
Fonte  Agência Carta Maior, em 09/03/2011

No passado dia 8 de março celebrou-se o Dia Internacional da Mulher. Os dias ou anos internacionais não são, em geral, celebrações. São, pelo contrário, modos de assinalar que há pouco para celebrar e muito para denunciar e transformar. Não há natureza humana assexuada; há homens e mulheres. Falar de natureza humana sem falar na diferença sexual é ocultar que a “metade” das mulheres vale menos que a dos homens. Sob formas que variam consoante o tempo e o lugar, as mulheres têm sido consideradas como seres cuja humanidade é problemática (mais perigosa ou menos capaz) quando comparada com a dos homens. À dominação sexual que este preconceito gera chamamos patriarcado e ao senso comum que o alimenta e reproduz, cultura patriarcal.

A persistência histórica desta cultura é tão forte que mesmo nas regiões do mundo em que ela foi oficialmente superada pela consagração constitucional da igualdade sexual, as práticas quotidianas das instituições e das relações sociais continuam a reproduzir o preconceito e a desigualdade. Ser feminista hoje significa reconhecer que tal discriminação existe e é injusta e desejar activamente que ela seja eliminada. Nas actuais condições históricas, falar de natureza humana como se ela fosse sexualmente indiferente, seja no plano filosófico seja no plano político, é pactuar com o patriarcado.

A cultura patriarcal vem de longe e atravessa tanto a cultura ocidental como as culturas africanas, indígenas e islâmicas. Para Aristóteles, a mulher é um homem mutilado e para São Tomás de Aquino, sendo o homem o elemento activo da procriação, o nascimento de uma mulher é sinal da debilidade do procriador. Esta cultura, ancorada por vezes em textos sagrados (Bíblia e Corão), tem estado sempre ao serviço da economia política dominante que, nos tempos modernos, tem sido o capitalismo e o colonialismo. Em Three Guineas (1938), em resposta a um pedido de apoio financeiro para o esforço de guerra, Virginia Woolf recusa, lembrando a secundarização das mulheres na nação, e afirma provocatoriamente: “Como mulher, não tenho país. Como mulher, não quero ter país. Como mulher, o meu país é o mundo inteiro”.

Durante a ditadura portuguesa, as Novas Cartas Portuguesas publicadas em 1972 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, denunciavam o patriarcado como parte da estrutura fascista que sustentava a guerra colonial em África. "Angola é nossa" era o correlato de "as mulheres são nossas (de nós, homens)" e no sexo delas se defendia a honra deles. O livro foi imediatamente apreendido porque justamente percebido como um libelo contra a guerra colonial e as autoras só não foram julgadas porque entretanto ocorreu a Revolução dos Cravos em 25 de Abril de 1974.

A violência que a opressão sexual implica ocorre sob duas formas, hardcore e softcore. A versão hardcore é o catálogo da vergonha e do horror do mundo. Em Portugal, morreram 43 mulheres em 2010, vítimas de violência doméstica. Na Cidade Juarez (México) foram assassinadas nos últimos anos 427 mulheres, todas jovens e pobres, trabalhadoras nas fábricas do capitalismo selvagem, as maquiladoras, um crime organizado hoje conhecido por femicídio. Em vários países de África, continua a praticar-se a mutilação genital. Na Arábia Saudita, até há pouco, as mulheres nem sequer tinham certificado de nascimento. No Irão, a vida de uma mulher vale metade da do homem num acidente de viação; em tribunal, o testemunho de um homem vale tanto quanto o de duas mulheres; a mulher pode ser apedrejada até à morte em caso de adultério, prática, aliás, proibida na maioria dos países de cultura islâmica.

A versão softcore é insidiosa e silenciosa e ocorre no seio das famílias, instituições e comunidades, não porque as mulheres sejam inferiores mas, pelo contrário, porque são consideradas superiores no seu espírito de abnegação e na sua disponibilidade para ajudar em tempos difíceis. Porque é uma disposição natural, não há sequer que lhes perguntar se aceitam os encargos ou sob que condições. Em Portugal, por exemplo, os cortes nas despesas sociais do Estado actualmente em curso vitimizam em particular as mulheres. As mulheres são as principais provedoras do cuidado a dependentes (crianças, velhos, doentes, pessoas com deficiência). Se, com o encerramento dos hospitais psiquiátricos, os doentes mentais são devolvidos às famílias, o cuidado fica a cargo das mulheres. A impossibilidade de conciliar o trabalho remunerado com o trabalho doméstico faz com que Portugal tenha um dos valores mais baixos de fecundidade do mundo. Cuidar dos vivos torna-se incompatível com desejar mais vivos.

Mas a cultura patriarcal tem, em certos contextos, uma outra dimensão particularmente perversa: a de criar a ideia na opinião pública que as mulheres são oprimidas e, como tal, vítimas indefesas e silenciosas.

Este estereótipo torna possível ignorar ou desvalorizar as lutas de resistência e a capacidade de inovação política das mulheres. É assim que se ignora o papel fundamental das mulheres na revolução do Egipto ou na luta contra a pilhagem da terra na Índia; a acção política das mulheres que lideram os municípios em tantas pequenas cidades africanas e a sua luta contra o machismo dos lideres partidários que bloqueiam o acesso das mulheres ao poder político nacional; a luta incessante e cheia de riscos pela punição dos criminosos levada a cabo pelas mães das jovens assassinadas em Cidade Juarez; as conquistas das mulheres indígenas e islâmicas na luta pela igualdade e pelo respeito da diferença, transformando por dentro as culturas a que pertencem; as práticas inovadoras de defesa da agricultura familiar e das sementes tradicionais das mulheres do Quénia e de tantos outros países de África; a resposta das mulheres palestinianas quando perguntadas por auto-convencidas feministas europeias sobre o uso de contraceptivos: “na Palestina, ter filhos é lutar contra a limpeza étnica que Israel impõe ao nosso povo”.


*Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

segunda-feira, 14 de março de 2011

Haiti e Japão - Aquecimento Global


 

Roberto Malvezzi (Gogó)

A tragédia japonesa – embora ainda longe de ser avaliada em todas as suas dimensões – põe em crise algumas afirmações extremamente arrogantes do mundo da ciência e da técnica, particularmente aquelas postas a serviços de setores poderosos no mundo de hoje.

Em primeiro, quando aconteceu o terremoto no Haiti, houve unanimidade em dizer que “se fosse no Japão praticamente não teria conseqüências”. Claro, a tecnologia japonesa evitou o que poderia ser muito pior. Entretanto, os mortos já contados, os milhares de desaparecidos ainda não devidamente contabilizados, mostram que, diante da fúria da Terra em transe, nenhuma tecnologia é de tão poderosa que possa evitar todas as tragédias.

Segundo, com a retomada do programa nuclear brasileiro, começando aqui pelo São Francisco, o argumento posto na praça é que “hoje existe uma segurança que não havia no tempo de Chernobyl”. Mais uma vez a assertiva não se sustenta. A Terra em fúria é capaz de pôr em risco qualquer pretensa segurança nuclear. Ainda mais, como os resíduos têm efeitos ativos por cerca de mil anos, ninguém sabe como será nosso planeta durante esse milênio. O certo é que será muito diferente do que é hoje. Portanto, mais que a arrogância da técnica e da ciência, espera-se uma boa dose de bom senso e responsabilidade com as gerações atuais e futuras.

Finalmente, existe uma pergunta crucial: há alguma relação entre o aquecimento global e o aumento dos fenômenos sísmicos?

Nenhum cientista põe a mão no fogo para dizer que sim. Entretanto, há várias insinuações que pode haver. No encontro para debater catástrofes no Brasil, Câmara dos Deputados, uma professora da UNB insinuou que poderia haver uma correlação, mas não se aprofundou.

Fiz essa pergunta numa lista latinoamericana de pessoas envolvidas com o debate sobre mudanças climáticas. Um climatologista da Universidade de Buenos Aires, Eduardo Agosta, assim respondeu:

“Em geral a teoria diz assim: o aquecimento global, entre outras coisas, gera um aumento do nível do mar (por expansão e/ou derretimento do gelo), o qual, por sua vez, gera mudanças na distribuição da massa superficial da Terra, a qual, por sua vez, muda a velocidade angular da Terra (variações na velocidade de rotação da Terra). Estas mudanças de velocidade de rotação podem alterar o movimento do magma terrestre, gerando variações na pressão interna sobre as placas tectônicas e, portanto, alterações na atividade sísmica da Terra. Contudo, se deveria estudar cada uma destas fases, antes de asseverar a relação direta entre Aquecimento Global e terremotos.”

Portanto, guardadas todas as devidas restrições, é bom pôr a barba de molho

A Bíblia e a historicidade dos fatos

Ildo Bohn Gass


A Bíblia não é um livro de ciências e nem um livro de história

Assim como os livros da Bíblia não são livros de ciência, assim também não podemos lê-los simplesmente como livros de história. A Bíblia é como um espelho em que, através da história do povo hebreu, está refletida a história da humanidade. Eis por que identificamos quase espontaneamente situações que o povo de Israel viveu com situações que estamos vivendo hoje. Assim também identificamos personagens da Bíblia com personagens de nosso tempo, como se Caim e Abel, Abraão e Sara, Moisés e o Faraó, Jeremias e Amós continuassem no meio de nós.


A Bíblia é interpretação da história

Nem tudo o que está narrado nos livros da Bíblia conhecidos como históricos aconteceu do jeito como está escrito. É que, mais do que fazer uma descrição dos fatos como se fossem filmagem, as Escrituras interpretam a história, a vida. Descrevem a experiência de Deus que as pessoas e o povo fazem. Por isso, é correto dizer que, ao estudarmos um texto bíblico, estamos na verdade interpretando uma interpretação.


Na Bíblia, há várias interpretações da mesma história

Dentro da própria Bíblia tem diferentes interpretações a respeito da mesma história.

Por exemplo, a história da tomada da terra narrada no livro de Josué não é a mesma que está narrada no livro dos Juízes. Para exemplificar, veja como em Josué se afirma que toda a Terra Prometida já estava libertada das mãos dos reis (Js 11,23; 21,43-45). Porém, logo adiante, no livro de Juízes, se afirma que ainda faltava muito por conquistar (Jz 1,21.27-35).

Para entender estas diferenças, é importante ter presente que foi um longo processo que essas histórias percorreram até serem fixadas na forma escrita como as temos hoje. Cada texto tem sua intenção teológica. São interpretações diferentes e até contraditórias dos mesmos fatos históricos.

Há, inclusive, uma evolução na reflexão teológica, como se pode perceber, por exemplo, na atribuição dos males que vêm em prejuízo do povo.

Um caso é o recenseamento que o rei Davi fez (2Sm 24,1-15). No v. 10, nos é dito que realizar o censo é pecado. Certamente é pecado, porque parecia querer limitar o poder de Deus, a quem pertence o poder sobre a vida das pessoas. Também é pecado, porque visa fornecer ao rei o número de pessoas para poder melhor explorá-las através dos impostos e para saber o número de homens aptos a serem recrutados para a guerra (v. 9). Quando este texto é escrito, pensava-se ainda que Deus era também o autor do mal. Por isso, diz no v. 1 que foi Deus que incitou a Davi para que fizesse o censo. Quando, séculos mais tarde, o mesmo fato é contado novamente, já houve uma evolução na reflexão teológica em Israel. Agora, o mal já não vem mais de Deus, mas vem de Satã (1Cr 21,1).


A Bíblia nasceu aos poucos

Como podemos ver, a Bíblia é um livro que nasceu aos poucos. Nasceu da vida de um povo que tentou ser fiel a Deus presente no cotidiano.

Antes do texto escrito vêm experiências vividas pelas mais diferentes pessoas e em lugares variados. Todas essas experiências foram sendo contadas, recontadas durante muito tempo. Só então a memória virou texto.

Sobre os mesmos fatos foram surgindo diferentes tradições de acordo com o meio onde eram narradas, recontadas e escritas. Na cidade, nos palácios e no templo a reelaboração era de um jeito. No campo era de outro. Cada qual de acordo com seus condicionamentos, interesses, limites e horizontes.

Aos poucos, as tradições foram agrupadas dentro de narrativas ou conjuntos maiores, adquirindo um novo colorido, fornecendo respostas novas a novas necessidades, até o texto chegar à sua redação final como o temos hoje.


A Bíblia não quer transmitir os fatos, mas a intenção, a mensagem a partir dos fatos

Além disso, a Bíblia não descreve uma história "factual", mas "intencional". O mais importante não é o "fato" em si, mas a "intenção" que o autor quer transmitir. Consequência disso é que a pergunta certa a ser feita ao texto bíblico não pode ser: "o fato foi ou não foi assim?", mas sim: "qual a intenção de quem escreveu o texto?", ou: "o que o texto quer dizer?", ou ainda: "qual sua mensagem?".

Para exemplificar o que acabamos de refletir, lembremo-nos da estória de Caim e Abel (Gn 4). Aqueles que lêem esse texto como fato histórico não conseguem explicar de onde veio a mulher de Caim, quando naquele momento, se lemos o texto ao pé da letra, apenas existiam Adão, Eva e Caim. Se, no entanto, vamos ao texto em busca da intenção do autor, do sentido do texto, certamente encontraremos uma resposta.


A Bíblia não é fotografia nem filmagem, mas raio-X, isto é, revela a vida por dentro

A Bíblia não apresenta fotografias ou filmagens dos acontecimentos. Sua interpretação dos fatos vai além das aparências, da cara, da fachada. Por isso é melhor compará-la com um raio-X, isto é, a Bíblia nos revela o sentido profundo que está dentro dos fatos, por trás das palavras. Revela a presença misteriosa de Deus na vida, na história, nas pessoas.

Mais do que uma história de fatos, a Bíblia contém teologias da história. São diferentes maneiras de perceber a presença de Deus nos fatos, das suas maravilhas na vida de seu povo. O que lhe interessa é a pulsação da presença de Deus nas veias dos acontecimentos. A comunidade israelita faz como que "pinturas" e, às vezes, quadros diferentes de uma mesma realidade. Assim acontece com as duas "pinturas" da criação, logo no início do livro do Gênesis.

Compare a primeira narrativa da criação (Gn 1,1-2,4a) com a segunda (Gn 2,4b-25) e perceba como o povo da Bíblia pinta dois quadros muito diferentes para revelar o sentido profundo da vida. A primeira reflete a situação de sofrimento do povo no exílio da Babilônia ao redor de 550 a.C. A segunda, ao relatar o plano de Deus para a criação e a humanidade, retrata como o povo alimentava sua esperança na época da opressão do rei Salomão ao redor de 950 a.C.


A Bíblia nos quer revelar a presença amorosa de Deus na vida

Continuando a usar imagens para comparar as Escrituras, poderíamos dizer ainda que a Bíblia é como um binóculo. Quando ficamos olhando para ele, nós só enxergamos ele mesmo, o binóculo. Porém, quando olhamos através dele, vemos o horizonte de outro jeito, com outra perspectiva. Assim também é a Sagrada Escritura. Olhando à distância, ela parece um livro qualquer. Mas se olhamos através dela, aquilo que está por trás das palavras, atrás da lente desse "binóculo", então percebemos sua intenção, que é revelar a presença amorosa de Deus na vida, nos acontecimentos.


Deus se manifestou no passado e continua se manifestando no presente

Uma coisa que nos deixa com um pé atrás em relação à Bíblia é a facilidade e frequência com que se diz que Deus apareceu e falou com alguns personagens como Noé, Abraão e Sara, Agar e Jacó, Rebeca e Moisés, Elias e tantos outros. Será que apareceu cara a cara e falou com sua voz? Ora, sabemos que Deus não tem cara e sua voz não vibra no ar. Mas também sabemos que, para comunicar nossas experiências mais profundas, temos que usar imagens. Nós, que temos fé, sabemos que Deus está invisivelmente presente em nossa vida, conhecemos os traços do seu rosto e escutamos sua voz, sobretudo em momentos decisivos.

O povo tem razão quando diz: "Deus te ouça!", "Deus te guarde!", "Vai com Deus!" e outras expressões que manifestam a presença atuante de Deus em todos os nossos passos. Só podemos falar de Deus através de imagens e figuras.


(abraços boa leitura - Luiz Marles)

quarta-feira, 9 de março de 2011

A crise do Filho do Homem


Leonardo Boff *

A interpretação teológica da morte de Jesus na cruz, como sacrifício por nossos pecados, fez-nos esquecer com demasiada pressa os reais motivos históricos que o levaram ao tribunal religioso e político e por fim ao assassinato na cruz.
Cristo não foi simplesmente a doce e mansa figura de Nazaré. Foi alguém que usou palavras duras, não fugiu a polêmicas e para salvaguardar a sacralidade do templo, usou também da violência física. O contexto de sua vida, como as pesquisas recentes mostraram, é comum a dos camponeses e artesãos mediterrâneos que viviam uma resistência radical, mas não violenta contra o desenvolvimento urbano de Herodes Antipas e o comercialismo rural de Roma, imposto na Baixa Galiléia -terra de Jesus - que empobrecia toda a população. Pregou uma mensagem que constituiu uma crise radical para a situação política e religiosa da época. Anunciou o Reino de Deus em oposição do reino de César e em vez da lei, o amor.
Reino de Deus apresenta duas dimensões, uma política e outra religiosa. A política se opunha ao Reino de César em Roma que se entendia filho de Deus, Deus e Deus de Deus, os mesmos títulos que os cristãos mais tarde irão atribuir a Jesus. Tal atribuição a Jesus era intolerável para um judeu piedoso e um crime de lesa-majestade para um romano. A outra versão, a religiosa, se chamava apocalíptica que significava: face às perversidades do mundo, esperava-se a intervenção iminente de Deus e a inauguração de um Reino de justiça e de paz.
Jesus se filia a esta corrente. Apenas com a diferença: o Reino é um processo que apenas começou e vai se realizando à medida em que as pessoas mudam mentes e corações. Só no termo da história ocorrerá a grande virada com um novo céu e uma nova Terra. Essa eutopia (realidade boa), não a Igreja, é o projeto fundamental de Jesus. Ele se entende como aquele que em nome de Deus vai acelerar semelhante processo. Essa concepção de Reino colocou em crise os vários atores sociais, os publicanos e saduceus, aliados dos romanos, a classe sacerdotal, os guerrilheiros zelotas e principalmente os fariseus. Estes são os opositores principais do Filho do Homem, pois ao invés do amor pregavam a rigidez da lei, no lugar de um Deus bom, "Paizinho" (Abba), um Juiz severo.
Para Jesus Deus é um Pai com características de mãe misericordiosa.
Jesus faz desta compreensão o centro de sua mensagem. Entende todo poder como mero serviço. Rejeita as hierarquias porque todos somos irmãos e irmãs, sem mestres e pais.
A crise que suscitou, levou à decretação de sua morte na cruz. Jesus entrou numa aguda crise pessoal, chamada pelos estudiosos de "crise da Galiléia". Sente-se abandonado pelos seguidores, vislumbra no horizonte a morte violenta, como a dos profetas. A tentação do monte Getsêmani representa um paroxismo: "Pai afasta de mim este cálice". Mas também o propósito de tudo suportar e de levar seu compromisso até o fim. Na cruz grita quase desesperado: "Meu Deus, por que me abandonaste"? Mesmo assim continua chamando-o de "Meu Deus". A Epístola aos Hebreus testemunha: "Entre clamores e lágrimas, suplicou Àquele que o podia salvar da morte". Versões críticas antigas dizem "e não foi atendido…, apesar de ser Filho de Deus teve que aprender a obedecer por meio dos sofrimentos" (5,7-8).
Sua última palavra foi: "Pai em tuas mãos entrego o meu espírito", expressão suprema de uma confiança ilimitada. De fato, ele é apresentado como o protótipo do homem que suportou até o fim o fracasso do projeto de vida, crendo num sentido radical mesmo dentro do absurdo existencial.
A ressurreição mostrou o acerto de tal atitude. Foi a base para proclamá-lo mais tarde como Filho de Deus e Deus encarnado.

* Teólogo e professor emérito de ética da UERJ

Textos sagrados (Lc 1,47-55)



                                                                                               Por Maria Soave

Vivo minha existência na insistência de partilhar, sobretudo com mulheres, crianças e empobrecidos, Vida e Bíblia.
Nas aulas de catequese das irmãs ursulinas (uma congregação católica romana) e nas faculdades de teologia, do mundo onde eu nasci e fui criada, sempre me disseram que Vida e Bíblia não andam bem abraçadas.
Aprendi, na minha formação doutrinal e acadêmica, que a Vida e a Bíblia não se olham de frente, entre iguais. A catequese das irmãs ursulinas e a doutrinas das faculdades de teologia me ensinaram que a Bíblia e a Vida não andam abraçadas, não constroem amor, numa troca de toques, respiros, choros e alegrias. A Bíblia, texto sagrado de nossa religião, é o texto mais importante, mais importante da Vida mesma... tanto é que, normalmente, escrevemos Bíblia com letra maiúscula e não fazemos a mesma coisa todas as vezes que escrevemos a palavra "vida"...
È ela, a Bíblia, que ilumina a Vida, aquela vida assim, comum, cotidiana e corriqueira e lhe dá a sacralidade que esta vida, por si mesma, não possui.
Por longos anos percebi vidas murcharem porque procuravam o sagrado fora delas. Corpos de mulheres e homens entristecidos e envergonhados porque criados em pensar que "o Sagrado" cheira incenso, toalhas brancas, túnicas alvejadas, mãos imaculadas e sem calos e não cozinha, panelas, roupa para lavar, crianças para criar, terra para lavrar, mãos e sonhos calejados...
Nestes anos de bênção e vocação como missionária nestas terras amadas, no meio de mulheres, crianças e pessoas empobrecidas, percebi que existe um feitiço ruim que os poderosos colocaram na religião e a paralisaram. Fizeram da religião ( palavra que vem do latim e significa re-ligar) algo que não junta mais Fé e Vida, Bíblia e Vida, os Corpos e o Corpo que é o Cristo. E a religião virou triste, mandona, seca e vazia...
Vivo minha existência na insistência de partilhar, sobretudo com mulheres, crianças e empobrecidos, Vida e Bíblia.
No mundo onde fui criada sempre me disseram que Vida e Bíblia não andam abr0açadas. A Bíblia é sagrada e superior em relação à Vida... mas o meu coração não consegue entender estas coisas de "superior"... "sobre"...
Para mim, que vivo de vocação e sonho é preciso sonhar...
Falar de Bíblia significa falar de textos...Gosto de saborear, bem baixinho e devagar, esta pequena palavra... textos... é sensual esta palavra... a raiz antiga desta palavra, nos traz a palavra "tecido", aquele produto feito de mil fios diferentes, trançados com magia e alquimia num tear... Produto feito de milhares, milhões de fios e do sonho das mãos de quem trançou... tecido... texto...
Da palavra texto e da palavra tecido vem também a "roupa" que veste a nossa alma, uma roupa tão transparente que a deixa muitas vezes exposta para olhares atentos.
É tecido o nosso coração... É tecido a nossa pele... É tecido nosso Corpo... Transparência de alma...
Quando falamos, então, de textos sagrados, queremos falar dos tecidos feitos de muitos fios, de muitas histórias e pessoas, trançados com magia e alquimia pelo Deus Libertador da História das pessoas empobrecidas. Quando falamos de textos sagrados, queremos falar dos nossos corpos, das nossas vidas, suores, corações e peles que tocam os textos da Bíblia, que com eles se entrelaçam, fazem amor, choram, se alegram e brigam, para que a Vida de mulheres, crianças e empobrecidos possa ter a última palavra (Jo 10,10).
Minh’alma é um tecido, um texto feito quase todo de águas. Conheço este meu texto de águas todas as vezes que suo de emoção, de calor, de cansaço ou de prazer. Meu corpo é um texto, um tecido de águas. Esta água que é meu " corpoalma" é sagrada!
Conheço este meu texto de água quando, a cada lua, o sangue visita meus dias, quando os rins purificam ou quando lágrimas de alegria, de tristeza ou de saudade percorrem o meu rosto. È esta "almacorpo", feita de água, que abraça outro tecido vivo que é a Bíblia e, neste abraço amoroso e curioso, o sagrado acontece e a Vida volta a ser plena e viva!
È dela que eu aprendi muito do que acabo de escrever. È em memória dela que estou falando. Na memória dela e das muitas mulheres que, como ela, fizeram do "corpoalmacorpo" espaço sagrado da revelação da vida em plenitude.
Dela sabemos o nome (coisa rara nas mulheres da Bíblia), um nome tão comum e corriqueiro, como o cheiro de cozinha ou de uma enorme trouxa de roupa suja para lavar: MARIA. Crescida nos duros códigos patriarcais do mundo judaico, onde a pureza e a sacralidade não moravam nos corpos das mulheres, mas no corpo duro dos sacerdotes que anunciavam com suas vestes brancas, imaculadas e sininhos pindurados nas túnicas sua chegada no templo.
Dela sabemos o nome, um nome tão comum como o cheiro se suor, como as lágrimas, como o sangue e os humores das luas nos corpos das mulheres...MARIA.
Tinha sido criada pensando que o Verbo, a Palavra fosse mais importante e sagrada do que o corpo de mulheres e empobrecidos.
Um sonho teimoso morava no "corpoalmacorpo"de Maria, um sonho herdado das mães na Fé; sonho de Agar, de Tamar, de Rute, de Bersabéia e de Raab ( Mt 1,1-17)... o sonho de corpos enamorados pelo projeto de Deus, de um mundo de paz e de relações re-criadas... corpos enamorados, por isso, Almas ressuscitadas!
Maria disse sim ao sonho que orava na sua "almacorpoalma". O texto, o tecido, o Corpo do Povo da Caminhada de Libertação e o Deus Libertador, fez amor com o Corpo de Maria... suores... humores... lágrimas... prazeres... sangue... José, homem novo... sonho de uma outra masculinidade feita de cuidado e ternura... E o Texto, a Palavra, o Verbo se fez Carne na Carne de Maria (Jo 1,1ss). A Vida do Filho de Deus começou a nadar nas águas interiores da barriga da alma da Mãe de Deus:
"A minha alma anuncia a grandeza do Senhor.
O meu espírito está alegre por causa de Deus, meu Salvador.
Pois ele lembrou de mim, sua humilde serva!
De agora em diante todos vão me chamar de mulher abençoada
Porque o deus poderoso fez grandes coisas por mim." ( Lc 1, 47-49)
Lembrando, neste mês de março, do "SIM" de Maria e do "NÃO" das muitas Marias operárias que lutaram, no dia 8 de março, contra a discriminação das mulheres e, por isso, morreram queimadas numa fábrica de TECIDOS!
É de textos-tecidos que a Vida nos leva a falar. É com estes tecidos, que são os corpos de mulheres, crianças e empobrecidos que precisamos nos comprometer!
Amém!

A Quaresma e a tristeza divina


                                                                                                       Rubem Alves

"Porque a tristeza de Deus produz mudança... mas a tristeza do mundo produz morte." II Co 7:10

As quaresmeiras aí estão. Flores de fevereiro e março, anunciando que nem só de cores brancas e verdes vive a alma humana, mas também de lilases e roxas. Nem só de alegrias, mas também de tristezas. A propósito, não é tarefa das mais fáceis empreender um "dedo de prosa", mínimo que seja, sobre o tema da tristeza. Houve tempos em que a tristeza era prima irmã da poesia, da musica, da vida. Pode-se dizer, com o testemunho de um bom numero de musicas que ainda hoje cantamos que a tristeza sempre foi a matéria primado fazer poético. Quem nunca cantou: "Tristeza, por favor, vai embora, minha alma que chora, está vendo o seu fim...". Ou ainda: "Cantando eu mando a tristeza embora..." Mais: "Triste madrugada foi aquela em que perdi meu violão..."

Essas músicas testemunham um tempo em que a experiência da alegria e da beleza só eram possíveis a partir do reconhecimento de uma certa tristeza nas pautas musicais da existência. Os tempos hoje são outros. Num projeto de vida em que as pessoas são tidas como máquinas, qualquer sombra de melancolia, de tristeza, de dor, deve ser abolida. Por uma simples razão: máquina não sente dor! Aos saudosos e melancólicos do presente, resta-lhes apenas o afogar-se nos remédios. É assim que lidamos com nossas tristezas: afogando-nos nos compridos.

O trecho da tradição bíblica que está em epígrafe acima faz referência à tristeza segundo Deus. Dorothee Sölle assim o interpretou: A presença divina nunca é presença observadora: a presença divina é sempre dor ou alegria de Deus. Mas, o que distingue a tristeza divina das tristezas do mundo? pergunta o apóstolo dos gentios. Tristeza do mundo é tristeza que gira em torno de si mesma, patina sem sair do lugar. É tristeza que paralisa no remorso, na lástima, no mórbido ruminar as faltas passadas, na lamuria sem fim. Nada se transforma, nada se metamorfoseia, nada muda. É tristeza que não conhece a esperança, o futuro, por estar afogada no passado. É Tristeza que mata, que corrói, que faz adoecer. Como exemplo, atente-se às tristezas próprias do mundo da aparência: a anorexia, a bulimia, sofrimento de um corpo que morre para parecer belo. Ou a tristeza do consumo: esse mal-estar diabólico que leva do nada a lugar nenhum. A tristeza da guerra, da destruição que faz morrer a palavra e perpetua o ódio.
A tristeza segundo Deus, porém, produz mudança, movimento, superação, transformação, produz vida. É tristeza que não patina nas culpas, mas avança na responsabilidade. Tristeza de parturiente, que traz a esperança e o futuro no ventre. É tristeza que gera a sagrada ira, a santa indignação, o grito, a libertação. Sem a participação na tristeza divina, o domingo da ressurreição não passa de oba-oba. Que as quaresmeiras e os ipês roxos, também próprios do tempo quaresmal, nos convidem a participar da tristeza segundo Deus, aquela que verdadeiramente nos conduz à mudança, ao arrependimento, à transformação."

E por falar em tristeza, com autorização do Edson, lembro o Jobim: "Assim como o oceano só é belo com o luar, assim como a canção só tem razão se se cantar, assim como uma nuvem só acontece se chover, assim como o poeta só é grande se sofrer..." A poesia é o triunfo sobre o sofrimento. Lembro também a Adélia Prado: "Minha mãe me dava o peito e eu escutava, / o ouvido colado à fonte dos meus suspiros: / "Ó meu Deus, meu Jesus, misericórdia". / Comia leite e culpa de estar alegre quando fico./ Se ficasse na roça ia ser carpideira, puxadeira de terço, / cantadeira, o que na vida é beleza sem esfuziamentos, / as tristezas maravilhosas. Mas eu vim pra cidade fazer versos tão tristes /que dão gosto, meu Jesus misericórdia. / Por prazer da tristeza eu vivo alegre." " Cantiga triste, pode com ela / é quem não perdeu alegria."

- Manhã de sábado, aqueles jovens em vestes cor marrom, seres de um outro mundo, quem sabe anjos descidos à terra, sorridentes, nos semáforos, falavam aos homens comuns entrincheirados nos seus carros, apressados, e pediam que os ajudassem no seu trabalho: ajudar os pobres das nossas ruas. Anjos da "Toca de Assis", nascida há 10 anos, em Campinas. Têm 6 casas. Num texto bíblico uma mulher disse a Jesus que ela ficaria feliz se pudesse comer das migalhas que caem da mesa dos que se banqueteiam. As migalhas que caem da mesa...Acontece comigo. Acho que acontece com todo mundo. A gente vai ajuntando coisas e mais coisas, coisas que nunca serão usadas. Para nós, migalhas que nunca serão comida. Para os pobres são comida, proteção, calor, vida... Já comecei a abrir gavetas e armários em busca de migalhas... Já fiz uma pilha de camisetas.

Esse texto acima me chegou via Internet. A pessoa que o escreveu é um jovem, amigo, pastor de uma Igreja Presbiteriana no Rio de Janeiro, Edson Fernando de Almeida. . Imagino que essa tenha sido a essência de uma meditação que ele ofereceu aos seus fiéis: pouquíssimas palavras, todas elas necessárias. Sabedoria e beleza. Alegra-me saber que as palavras de Deus ainda podem ser ouvidas saindo da boca dos poetas. Eu teria alegria em me assentar nos bancos da igreja do Edson para ouvir sua palavra mansa. As coisas que ele fala ou, quem sabe, as coisas que o Espírito fala através dele, põem beleza na minha tristeza. E a tristeza, quando é bela, se transforma em vinho que dá leveza ao coração. Me alegrarei ao ver as quaresmeiras floridas...

- Acho que deveria haver alguma lei que proibisse que as pessoas falassem palavras de consolo àqueles que choram a morte de uma pessoa querida nos velórios. Porque parece que os velórios têm o poder de emburrecer a inteligência, razão porque as pessoas se põem a dizer asnices. Abraçando, com ar grave, o marido que chora a morte da esposa: "É preciso ser forte"! Mas será que o marido deseja ser forte naquele momento? Será que o seu desejo não é entregar-se ao seu choro, coisa que ele é impedido de fazer por ter que dar atenção aos impertinentes? De que serve tal conselho? Palavras ditas a uma mãe que chora a morte do filho pequeno: "Deus também precisa de anjinhos no céu..." Se Deus precisa de anjinhos no céu e é todo poderoso, não seria melhor que ele, com o seu poder, fizesse quantos anjinhos quisesse, sem matar os filhos dos indefesos mortais? Matar os filhos dos mortais por interesse próprio, eu acho, não é prova de amor. Olhando o rosto do defunto: "Veja como ele está tranquilo..." Mas é claro. Tem de estar tranquilo. Está morto. "Deus sempre faz o melhor..." Se Deus sempre faz o melhor então os velórios deveriam ser lugar de risos e danças. Mas, cá comigo: se isso é o que Deus tem de melhor a fazer, então é melhor ficar longe dele. Acho que diante do mistério da morte e de uma pessoa que sofre só cabe o silêncio.

- Comovo-me ao ver as casas antigas, espremidas entre os edifícios. São como bois nos matadouros. Estão à espera do sacrifício. ( Ao re-ler esse texto percebi que cometi um lapso freudiano. Meus dedos escreveram o que eu não queria escrever. Ao invés de "estão" meus dedos escreveram "estou". Maldito Freud! ). Comovo-me pensando que houve um tempo em que aquela casa era o sonho, quem sabe de um casal. Conversavam, marido e mulher, fazendo planos. Seriam muito felizes. Plantariam flores no jardim. Hoje, as casas estão abandonadas, vazias. No caminho para Pocinhos passo sempre numa entrada onde está escrito "Sítio do Vovô". O vovô sonhou com os netos brincando no seu sítio. Tudo seria alegria. Veio depois a descoberta de que os netos tinham outras idéias. E essas outras idéias não previam passar os fins de semana no "sítio do vovô".
Eu dirigia devagar, não queria chegar, a tarde era fresca, céu azul, brisa de outono, ouvia o CD da Anne Sofie von Otter, cantora maravilhosa, foi-me invadindo uma sensação nostálgica, saudade pura, sem objeto. A saudade, normalmente, é saudade de alguma coisa, de alguém, de uma casa, de um lugar. Mas, por vezes, é só o sentimento puro, sem objeto. Você nunca sentiu isso, a memória só de um sentimento, sem saber a que ele pertence? Sabia que eram sentimentos de outros tempos, de outros lugares, tudo muito bonito. Tive então uma idéia meio louca. Quando as pessoas ficam velhas é comum que elas percam a memória. Para isso há explicações bioquímicas e neurológicas. Mas eu pensei se a explicação não poderia ser outra. Que os bioquímicos se ponham a fazer o seu trabalho de esquecimento atendendo a um pedido da alma que não suporta mais a saudade. Esquecemo-nos para nos curar da saudade. "Toda saudade é uma espécie de velhice", dizia o Riobaldo. O que mais dói na velhice não são as juntas; é a saudade. E assim vamos, de esquecimento em esquecimento, até chegarmos ao esquecimento definitivo...

- Relatado por minha amiga Tomiko, de uma conversa com um menininhho. "Como é que você se chama?" "Francisco." "Só Francisco, não tem outro nome?" "Sim, eu tenho outro nome. Meu outro nome é Deus." "Deus? Mas que fantástico! Como é que você se sente quando é Deus?" "Quando o meu nome é Deus eu fico todo alegria!"

- Aforismo, não sei de quem: "A morte é bela. O que atrapalha é o defunto."

A MÍSTICA DA PROFECIA ATUAL

Luiz Marles
texto publicado em     http://cebijovem.blogspot.com/2011/03/mistica-da-profecia-atual.html


Na iminência de encontrar uma sociedade justa e fraterna muitos jovens exaurem suas forças na esperança de ver a transformação ocorrer, mesmo com tantas catástrofes que os ronda a todo instante.
Diante de tantos desafios nesse mundo globalizado, a juventude que é tida como contribuinte no processo de transformação da sociedade em que participa, não pode se sentir desprovida dessas possibilidades. São crises econômicas e mudanças de paradigmas. Mudanças racionais e irracionais (tudo ocorre). Sentimentos complexos e atitudes antagônicas com a prática cristã, pois esquecem que o espírito de Deus dinamiza todos os seres vivos. Não podemos ficar parados, pois o Senhor nos condiciona a prática do bem.
“Estou numa grande angústia” (2Sm 24,14). Essas palavras do rei Davi são pertinentes a realidade vivida por cada um de nós necessitados da clemência do Senhor, por causa da usurpação e acúmulo neste reino deixado aos nossos cuidados. Somos movidos pelo espírito de Deus. A fortaleza do Senhor permanece conosco. Essa certeza precisa clarear todo nosso ser e reacender a mística. E quem sabe reascender-nos para um novo ardor missionário pautando-se nas denúncias daqueles profetas que ligados aos povos excluídos e marginalizados procuravam saciar suas angústias.
Todos são responsáveis por melhorarem os espaços em que vivem. Urge no mundo novos Miquéias, Amós e tantos outros que se angustiaram com a opressão praticada pelos gananciosos exploradores do povo. O socorro sempre vem. Mas não vamos em busca do socorro. Precisamos ser aqueles que socorrem. É necessário agir. Ser protagonista e não um parasita. É preciso tocar nas feridas e incomodar esses perseguidores astutos.
Tendo atitude profética não ficaremos apenas em discursos inflamados que somente esquentam o coração. É preciso atingir o âmago, sentir-se corroído de insatisfação, injúria e ser provocado a atuar decididamente na promoção do Reino. Toda essa ansiedade deve fazer parte da vida de quem conhece a proposta salvífica do Senhor, que como nos diz Isaías, nos conhece e nos chama pelo nome mesmo que a gente ainda não o conheça. E, Ele por conhecer nossa pequenez procura sanar os anseios que temos dando-nos a plenitude. Plenitude essa que possibilita ser mensageiro da paz, levando a todos os povos a certeza de um mundo melhor com nossa atitude.
Não nos conformemos com as insanidades impostas pelos grupos privilegiados, sejamos ousados e verdadeiros indo na contramão da história de quem só deseja oprimir.


Luiz Marles
Assessor do CEBI – Campos Belos - Goiás

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