Jurjo Torres Santomé
CAPÍTULO I
AS ORIGENS DA MODALIDADE DE CURRÍCULO INTEGRADO
Entre os últimos conceitos incorporados ao vocabulário
do corpo docente na Espanha, encontra-se o de “currículo transversal”. Aparece
no Projeto Curricular Básico (PCB), e as pessoas não iniciadas nestas questões
podem considerá-lo realmente novo. Até pouco tempo, porém, outros vocábulos
traduziam filosofias bastante semelhantes. Termos como “interdisciplinaridade”,
“educação global”, “centros de interesse”, “metodologia de projetos”,
“globalização” (vocábulo que aparece tanto no PCB como na LOGSE — Lei Orgânica
de Ordenação Geral do Sistema Educacional), foram seus predecessores.
Ao longo deste século a terminologia
aparece, desaparece e reaparece com certa freqüência. Pode-se pensar que no
fundo trata-se apenas do mesmo e eterno problema, que ainda não foi resolvido
definitivamente: o da relevância do
conhecimento escolar. Nas análises efetuadas a partir do final do século
passado e durante todo o século XX, sobre o significado dos processos de
escolarização e, conseqüentemente, sobre os conteúdos culturais que se manejam
nos centros de ensino, chama poderosamente a atenção
a denúncia sistemática do distanciamento existente entre a realidade e as
instituições escolares. Como alternativa, torna-se a insistir na necessidade de
que as questões sociais de vital importância, os problemas cotidianos, sejam
contemplados no trabalho curricular nas salas de aula e escolas. E como
estratégia para explicitar esta necessidade, utiliza-se um vocábulo que resume
esta filosofia. Assim, no início deste século, aparecem os termos “método de
projetos”, segundo William H. Kilpatrick, “centros de interesse”, segundo Ovide
Decroly, “globalização”, etc.
Na hora de pesquisar o verdadeiro
significado desta proposta, considero imprescindível reconstruir o que estava
acontecendo em outras esferas sociais, especialmente no mundo da produção. Essa
revisão pode nos fornecer informação suficientemente significativa para
aprofundar estes conceitos e chegar a compreender seu verdadeiro alcance. Dessa
maneira, não será necessário mudar freqüentemente de nome, devido à
coisificação do conceito ou sua distorção ou manipulação. Compreender a
filosofia de fundo também ajuda a julgar as propostas e práticas etiquetadas
com tais termos.
Não devemos esquecer que muitas vezes,
para estar na moda ou cumprir a legalidade, muda-se apenas a aparência das
propostas; no fundo, porém, continua se fazendo a mesma coisa. A rica filosofia
de conceitos como os que estamos mencionando pode acabar em mera rotina, em propostas
técnicas, completamente alheias aos problemas que serviram de estímulo para sua
formulação.
A POLÍTICA DE FRAGMENTAÇÃO DOS PROCESSOS DE PRODUÇÃO
O movimento pedagógico a favor da
globalização e da interdisciplinariedade nasceu de reinvidicações progressistas
de grupos ideológicos e políticos que
lutavam por urna maior democratização da sociedade. Pode mos constatar que ocorre uma coincidência temporal, por
exemplo, entre os ataques que os
movimentos sindicais do início do século dirigem contra as políticas trabalhistas e de produção planejadas sob os
pressupostos de “um controle científico”, segundo os princípios daquilo que
Frederick Winslow Taylor rotulou de “Management
científico”, e, por outro lado, com
os discursos de John Dewey e William H. Kilpatrick, exigindo uma reconsideração completa, tanto da função
como da prática da educação.
No
início deste século ocorreu urna autêntica revolução no funcionamento dos
sistemas de produção e distribuição no âmbito empresarial, revolução que possibilitaria processos de maior
acumulação de capital e de meios de produção em muito poucas mãos. Uma das
estratégias seguidas para a sua implantação radicava no barateamento da
mão-de-obra e,
ao rnesmo tempo, na “desapropriação” dos conhecimentos que, com o decorrer do tempo, foram acumulados por trabalhadores e trabalhadoras. Estes foram acusados de “vagabundagem sistemática” e logo após foram propostas medidas “científicas” de controle, que descompunham os processos de produção) em operações elementares, simples e automáticas. Nesta modalidade de gestão e produção foram colocados obstáculos que impediam que os trabalhadores participassem dos processos de tomada de decisões e de controle empresarial. Esta filosofia organizativa, que acentuava a divisão social e técnica do trabalho, aumentaria ainda mais a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual. Assim algumas pessoas passam então a ser as que pensam e decidem, enquanto as outras obedecem; como escreve F.W. Taylor, “também é evidente que, na maioria dos casos, precisa-se de um tipo de homem para estudar e planejar um trabalho, e de outro completamente diferente para executá-lo” (Taylor, F.W., 1970, p. 53).
ao rnesmo tempo, na “desapropriação” dos conhecimentos que, com o decorrer do tempo, foram acumulados por trabalhadores e trabalhadoras. Estes foram acusados de “vagabundagem sistemática” e logo após foram propostas medidas “científicas” de controle, que descompunham os processos de produção) em operações elementares, simples e automáticas. Nesta modalidade de gestão e produção foram colocados obstáculos que impediam que os trabalhadores participassem dos processos de tomada de decisões e de controle empresarial. Esta filosofia organizativa, que acentuava a divisão social e técnica do trabalho, aumentaria ainda mais a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual. Assim algumas pessoas passam então a ser as que pensam e decidem, enquanto as outras obedecem; como escreve F.W. Taylor, “também é evidente que, na maioria dos casos, precisa-se de um tipo de homem para estudar e planejar um trabalho, e de outro completamente diferente para executá-lo” (Taylor, F.W., 1970, p. 53).
O resultado desta política de fragmentação
dos empregos e da produção fez com que as ações dos trabalhadores se tornassem
bastante incompreensíveis para eles mesmos, o que propiciou, conseqüentemente,
o estabelecimento de um controle mais férreo dos empresários sobre tudo o que
se relacionasse com as decisões da produção e comercialização.
O aparecimento da linha de montagem na
indústria automobilística, isto é, a organização e distribuição das tarefas em
uma esteira transportador a criada por Henry Ford (daí o nome de “fordismo”
desta modalidade de organização do trabalho), contribuiu para reforçar ainda
mais as políticas trabalhistas de desqualificação em favor de uma mecanização
homogeneizadora. A utilização das linhas de montagem pressupõe a segmentação
prévia de todas as operações que fazem parte da fabricação, neste caso, de um
automóvel, de tal maneira que operários e operárías quase não precisam sair do lugar, pois as máquinas estão agrupadas
conforme sua ordem de uso e as esteiras transportadoras é que aproximam as
pecas que devem ser trabalhadas ou montadas; isto permite obter uma sensível
redução do tempo na rea1ização das tarefas. Os trabalhadores e trabalhadoras só
devem acompanhar o ritmo e a cadência da esteira e efetuar tarefas muito
concretas e fáceis. O próprio Henry Ford chegou a declarar que o trabalho que
qualquer operário tem de realizar é tão fácil que “até o indivíduo mais
estúpido pode aprender a executá-lo em dois dias”; nem mesmo a força física é
necessária, pois “a força de uma criança de três anos é suficiente” (citado por
César Neffa, J., 1990, p. 338).
Com uma estratégia similar acentua-se a
divisão social e técnica do trabalho; só umas poucas pessoas, muito
especializadas, chegam a compreender claramente todos os passos da produção de
qualquer mercadoria, e o que a motiva. Por meio de uma sofisticação cada vez
maior da tecnologia, por outro lado, as máquinas puderam começar a
encarregar-se dos trabalhos mais especializados. Os operários e operárias geralmente
tinham que atender apenas às atividades menos complexas, mais rotineiras e
monótonas. O filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin, resume
claramente as intenções de tal estratégia política e organizativa,
especialmente nas cenas que descrevem o comportamento do protagonista ante a
linha de montagem. Nesse processo de produção, a pessoa que se encontra diante
da máquina tem de obedecê-la. O ser humano perde progressivamente sua autonomia
e independência para submeter-se às vontades da máquina.
O fordismo traduz uma filosofia onde o
menos importante são as necessidades e interesses das pessoas. Um exemplo de
que só a rentabilidade econômica vale a pena, mesmo com relação às vidas
humanas; é proporcionado pela fabricação dos carros modelo “Pinto”, da Ford.
Este modelo tinha um grande defeito: seu depósito de gasolina explodia se ele
sofresse urna colisão na parte traseira. A Ford chegou a calcular o número
provável de mortos que o defeito provocaria, mas a onze dólares cada depósito,
não seria rentável corrigir a falha (Bowles, S.; Gordon, D.M. e Weisskopf,
Th.E., 1992, p. 42).
As conseqüências desta desapropriação de
conhecimentos e destrezas dos trabalhadores por máquinas e robôs representam um
atentado contra os seus direitos à participação dos processos de tomada de
decisões, impedindo a democratização dos processos de produção; ao mesmo
tempo, a imensa maioria das vagas de trabalho pode ser ocupada facilmente por
qualquer pessoa, sem necessidade de uma formação especializada. A organização
científica do trabalho possibilita a decomposição dos postos de trabalho em
tarefas e estas em gestos simples que devem ser executados conforme urna
cadência pré-definida de antemão por um número muito reduzido de pessoal
“especializado”. Deste modo, acentua-se uma filosofia defensora dos interesses
do capital baseada no incremento dos processos de desqualificação.
Tarefas que no passado precisavam de certa
qualificação profissional dividiram-se e subdividiram-se em várias tarefas
simples que qualquer pessoa sem formação pode desempenhar e, conseqüentemente,
dentro da lógica capitalista da oferta e da procura, com o direito de receber
salários mais baixos. Um exemplo dos efeitos desta nova organização do trabalho
é proporcionado pela fábrica Ford. Esta empresa, doze anos depois de ter
introduzido a linha de montagem, informou que 43% dos seus 7.782 diferentes
postos de trabalho exigiam apenas um dia de aprendizagem; 36%, um
período compreendido entre um dia e uma semana; 6%, de uma a duas semanas; e só
15% requeriam um período de aprendizagem mais longo. Em suma, 85% dos
trabalhadores da fábrica Ford conseguiam obter a aptidão necessária para o
trabalho em menos de duas semanas (citado por César Neffa, J., 1990, p. 141).
Assim,
as filosofias taylorista e fordista conseguiram reforçar os sistemas
piramidais e hierárquicos de autoridade, nos quais os máximos poder e prestígio
encontram-se no ápice e, à medida que descemos, aparece um maior contingente de
pessoas sem possibilidade de iniciativa e de apresentar propostas. Estas
estratégias destinam-se também a privar a classe trabalhadora de sua
capacidade de decisão sobre o próprio processo de trabalho, sobre o produto,
as condições e o ambiente de trabalho.
No entanto, essas políticas de controle e
degradação do trabalho humano tiveram de enfrentar fortes obstáculos colocados
pelas associações e sindicatos de operários. Existe documentação sobre
numerosas greves, manifestações e atos de sabotagem na maquinaria das fábricas.
Esta taylorização do trabalho é contestada pelas classes operarias e suas
organizações, bem como por intelectuais democratas, nos países nos quais
tentou-se implantá-la. Um exemplo disso foi a importante obra do francês Émile
Pouget, L‘Organisation du surmenage. Le systême Taylor (“A organização
do estresse. O sistema Taylor”), publicada em 1914, em função da greve de
operários das fábricas Renault na França que protestavam contra o sistema
taylorista que estava começando a ser aplicado. O próprio F. Taylor, nos
Estados Unidos, chegou a confessar que em diversos momentos da sua vida “fora
obrigado a seguir um trajeto diferente todos os dias para escapar da vigilância
dos operários que queriam surpreendê-lo em algum canto isolado da cidade”
(Coriat, B., 1993, p. 36).
Esta depreciação dos conhecimentos necessários para
fazer funcionar uma máquina faz com que qualquer operário ou operária possa ser
facilmente demitido, quando se tornar “incômodo” para os donos dos meios de
produção. A substituição não causa nenhuma dúvida, pois muitas outras pessoas
podem realizar esse mesmo trabalho. Conseqüentemente, a divisão do trabalho
dentro de modelos econômicos capitalistas facilita o controle e a dominação de
trabalhadores e trabalhadoras.
Trata-se de uma linha de inovação
tecnológica, organizativa e disciplinar que implica em uma política de
modificação qualitativa dos processos de produção, para fortalecer os sistemas
de controle direto dos trabalhadores. A fragmentação das atividades de
produção transformou-as em incompreensíveis; passou-se a oferecer apenas um
salário à classe trabalhadora como motivação para desenvolver seu trabalho;
foi-lhe negada a responsabilidade de intervir em questões tão importantes e
humanas como o que deve ser produzido, por quê, para quê, como, quando, etc.
A FRAGMENTAÇÃO DA CULTURA ESCOLAR
Este processo de desqualificação e atomização
de tarefas ocorrido no âmbito da produção e da distribuição também foi
reproduzido no interior dos sistemas educacionais.
Tanto trabalhadores como estudantes verão
negadas suas possibilidades de poder intervir nos processos produtivos e
educacionais dos quais participam. A taylorização no âmbito educacional faz com
que nem professores nem alunos possam participar dos processos de reflexão
crítica sobre a realidade. A educação institucionalizada parece ter se reduzido
exclusivamente a tarefas de custódia das gerações mais jovens. As
análises dos currículos ocultos evidenciam que o que realmente se aprende nas
salas de aula são habilidades relacionadas com a obediência e a submisão à autoridade
(Jackson, P.W., 1991; Torres, J., 1991).
Este processo de “despersonalização” e de
preparação da juventude para incorporar-se e assumir as regras do jogo de um
modelo de sociedade, de produção e relações de trabalho no qual sé pretende
que a maioria das pessoas não possa intervir e decidir, é contestado não só
pelos movimentos sindicais e partidos políticos progressistas, mas também pela
própria classe docente e estudantil.
As políticas e práticas educacionais
daquele momento histórico também eram denunciadas, porque seus resultados
práticos contribuíam para impedir a reflexão crítica sobre a realidade e a
participação na vida comunitária. Os conteúdos culturais com os quais meninos
e meninas entravam em contato durante sua permanência nas instituições
escolares eram demasiado abstratos, desconexos e, portanto, incompreensíveis.
Desde o início deste século, John Dewey, um dos fundadores da Escola Ativa,
critica as instituições de ensino que obrigam os alunos a trabalharem com uma
excessiva compartimentação da cultura em matérias, temas, lições e com grande
abundância de detalhes simples e pontuais. O resultado é que, como estratégia
para sobreviver nas salas de aula, meninos e meninas passam a acumular em
suas mentes uma “sobrecarga de fragmentos sem conexão uns com os
outros, que só são aceitos baseados na repetição ou na autoridade” (Dewey, J.,
1989, p. 159).
Os conteúdos culturais que formavam o
currículo escolar com excessiva freqüência eram descontextualizados, distantes
do mundo experiencial de alunos e alunas. As disciplinas escolares eram
trabalhadas de forma isolada e, assim, não se propiciava a construção e a
compreensão de nexos que permitissem sua estruturação com base na realidade.
Desta maneira, a instituição escolar traía
sua autentica razão de ser: preparar cidadãos e cidadãs para compreender,
julgar e intervir em sua comunidade, de uma forma responsável, justa, solidária
e democrática. Na medida em que também aqui tornava-se realidade a fragmentação
dos conteúdos culturais e das tarefas, os estudantes se deparavam com obstáculos
bastante intransponíveis para compreender o autêntico significado dos processos
de ensino e aprendizagem. Assim, nas instituições de ensino produzia-se uma
distorção semelhante à do mundo produtivo. Só poucas pessoas - que elaboravam
as diretrizes escolares e os livros-texto tinham uma idéia clara daquilo que
pretendiam; o resto, inclusive os professores e naturalmente os alunos e
alunas, chegavam a alterar, a finalidade da escolarização e da educação.
Na medida em que os conteúdos culturais
manejados nas salas de aula, fundamentalmente mediante livros-texto, não
passavam de enunciados mais ou menos abstratos (“pílulas” que deviam ser
memorizadas, porém sem possibilidade de reflexão nem de comparação), os
objetivos auteriticos (a aprendizagem que se promovia na prática cotidiana)
passavam a ressaltar acima de tudo a capacidade de obediência e submissão dos
alunos.
Os professores e professoras ocupavam-se
mais de serem obedecidos, de seguir um determinado ritmo nas tarefas a
realizar, de propiciar uma memorização de dados quase nunca bem compreendidos;
enquanto isso, os alunos geravam estratégias para recordar dados e conceitos
que para eles não tinham qualquer significação; portanto, preocupavam-se mais
com manter as aparências: apresentar exercícios caprichados, acabar a tempo,
não falar sem permissão, manter a ordem nas filas etc. O menos importante eram
os processos de reconstrução cultural que deviam ocorrer nas salas de aula. Na
verdade, o que realmente importava eram as notas escolares, que representavam a
mesma coisa que os salários para os operários e operárias. O produto e o
processo de trabalho não valiam a pena, só era importante o resultado
extrínseco, o salário ou as qualificações escolares.
AS NOVAS NECESSIDADES DAS ECONOMIAS DE PRODUÇÃO
FLEXÍVEL
Uma das características idiossincráticas das
economias dos países desenvolvidos desde a década de 80 é o acelerado processo
de intercomunicação e interdependência das suas economias.
Este processo de globalização das economias e,
portanto, de transformação das regras de competitividade obriga a revisar e
modificar os processos de produção e comercialização. Os modelos taylorista e
fordista começam a apresentar sinais de esgotamento quando deixam de acomodar-se
facilmente aos novos mercados. Atualmente, segundo as organizações
empresariais, se se quiser aumentar a competitividade das empresas é
imprescindível atingir uma maior eficiência produtiva, e para isso necessita-se
uma série de requisitos: aumento da produtividade, redução dos custos
trabalhistas e de capital, melhora da qualidade e flexibilização da produção;
conseqüentemente, é preciso recorrer a outras formas de gestão e organização do
trabalho.
Durante as décadas passadas, o fordismo
demonstrava seu êxito com a introdução da produção em massa e em série, apoiada
nas linhas de montagem para eliminar tempos ociosos da força de trabalho e nas
diversas operações de transformação das matérias-primas. O fordismo introduziu
uma série de mudanças importantes nas filosofias de produção de sua época.
Entre outras, a modificação das normas de consumo. Para produzir mais era
preciso aumentar simultaneamente o consumo, o que obrigou a elevar os salários
de trabalhadores e trabalhadoras, que também tinham que se converter em
consumidores. Mas na década de 70, ante a progressiva globalização das
economias, desencadeou-se a crise deste modelo produtivo. Agora a crise
econômica manifesta-se através do fato de que os mercados são cada vez mais
heterogêneos e estão mais fragmentados, provocando a desconcentração e a
descentralização da produção.
A descentralização é a única forma viável de
poder atender às necessidades e interesses de caráter mais local; desta forma é
possível detectar melhor as necessidades de seus consumidores.
A “estabilidade em um posto específico de
trabalho” é substituída a partir de agora pela “estabilidade no emprego dentro
da empresa”, no melhor dos
casos. Além disso, evidencia-se a precariedade nos contratos de trabalho na medida
em que surgem situações de instabilidade, temporalidade, instacionalidade,
insegurança das contratações, o que será chamado de flexibilidade trabalhista.
No mundo empresarial, entre as medidas
propostas encontram-se as de oferecer maior participação à classe trabalhadora
na concepção, programação e avaliação dos resultados de suas próprias tarefas.
Isto obrigará os empresários a impulsionar e sustentar programas de formação
permanente e de reciclagem trabalhista. Cada vez mais, a situação diferencia-se
das normas construídas pelas concepções tayloristas, pois nelas ressaltava-se a
formação profissional centrada na especialização, já que as tarefas estavam
claramente delimitadas e divididas. Mas isto deixou de combinar com a
flexibilidade da produção e dos mercados atuais.
Começa-se a conceder importância ao trabalho
em equipe, frente ao trabalho individual dos modelos tayloristas e fordistas.
Recordemos que antes propunha-se o trabalho individualizado, porque F.W. Taylor
estavaconvencido de que trabalhadores e trabalhadoras eram vagabundos, e que,
se tivessem a possibilidade de agrupar-se, ficariam ainda mais tempo sem fazer
nada, diminuiriam o ritmo.
Para o mundo empresarial, os anos 80
significam uma forte aposta nas ideologias e culturas eficientistas,
privatizadoras, individualistas, liberais e conservadoras que, de forma
prioritária, outorgam ao mercado a responsabilidade de destinar eficazmente os
recursos e determinar os preços. Ao mesmo tempo, a competição das indústrias e
mercados de outros países torna-se muito evidente, bem como as exigências de
uma população já convertida em consumidora voraz.
Taichi Ohno, engenheiro-chefe da empresa
Toyota, revolucionou os atuais modelos de gestão e produção; ele foi o
inspirador da famosa revolução Toyota durante a década de 50 e 60, e por esta
razão este modelo é conhecido pelos nomes de “toyotismo” ou “~hnonismo”.
Esta nova concepção da organização do trabalho
dintingue-se pelos seguintes fatores:
1. Eliminação
dos recursos redundantes, considerados um desperdício, e implantação da
“produção enxuta”. A fábrica enxuta ou “mínima” se reduz “às funções,
equipamentos e pessoal estritamente necessários para satisfazer à demanda
diária ou semanal” (Coriat, B., 1993, p. 23); conseqüentemente, precisa de menos
espaço, menos materiais acumulados, menos pessoal, menos maquinaria, menos
estoques. Para tornar possíveis tais reduções, deve-se desenvolver uma
estratégia para que as provisões e matérias necessárias para a fabricação ou
comercialização de algo possam estar disponíveis com a maior rapidez possível, “just-in-tíme”.
2. O objetivo da “Qualidade Total”, ou
defeito-zero, refere-se ao processo de detectar o quanto antes os defeitos de
produção e comercialização, eliminando-os desde o início, sem recorrer ao
aumento de custos. Para isso são utilizadas várias estratégias, entre elas: o
controle estatístico do processo e, especialmente, os grupos ou círculos de
qualidade.
Os “círculos de qualidade” são uma importante
inovação organizativa que ajuda a recuperar e aproveitar o conhecimento e
experiência dos trabalhadores, e que se propagou rapidamente das fábricas
japonesas da Toyota para empresas de outros países. A memória histórica do
empresariado percebeu que, quando uma nova máquina ou tecnologia é incorporada
a uma fábrica, sempre existem muitas probabilidades de aparecerem imprevistos
em seu funcionamento e utilização, não detectados nos testes. Aqueles que
detectavam alguma anomalia em primeiro lugar, imaginavam modos de solucioná-la,
eram os que a manejavam diretamente; daí a necessidade de contar com sua
colaboração para superar os imprevistos o quanto antes para, deste modo, não
diminuir a produção. Os círculos de qualidade são uma modalidade de organização
do trabalho na qual trabalhadores e trabalhadoras comprometem-se com os
interesses da empresa e colaboram de maneira mais intensa, colocando à
disposição da mesma sua experiência e conhecimentos para identificar problemas,
sugerir e experimentar mudanças que favoreçam uma maior produção e melhora da
qualidade.
Para chegar a este compromisso,
estimula-se sua competitividade mediante prêmios e incentivos econômicos,
fazendo com que trabalhadores e trabalhadoras se comprometam com os objetivos
de qualidade e produtividade propostos pela empresa, etc.
3. Envolver a classe trabalhadora na
tomada de decisões relativas à produção significa oferecer-lhe formação
contínua, pois as flutuações do mercado são muito grandes. A polivalência e
plurifuncionalidade de assalariados e assalariadas são condições básicas para
facilitar as inovações na organização das empresas e assegurar sua
produtividade e rentabilidade.
Segundo o próprio Taichi Ohno, “o sistema
Toyota originou-se na necessidade particular do Japão de produzir pequenas
quantidades de muitos modelos de produtos; mais tarde, o mesmo evoluiu para
converter-se em um verdadeiro sistema de produção. Devido a esta origem, este
sistema é fundamentalmente competitivo na diversificação” (citado em Coriat,
B., 1993, p. 20). Isso representava o contrário das propostas de Henry Ford,
que buscavam a fabricação em massa, isto é, uma grande quantidade de produtos
idênticos. Como pretende ajustar-se às flutuações qualitativas e quantitativas
do mercado e da demanda, o ohnonismo não se arrisca acumulando grandes estoques
que possam ficar encalhados. Assim, seu objetivo é a fábrica mínima ou
“enxuta”, que lhe servirá para reduzir custos, ganhar competitividade e, o que
é muito importante, poder. É preciso produzir apenas o necessário e no momento
certo.
Neste novo modelo de organização do
trabalho, as telecomunicações desempenham um papel muito importante. Com o
desenvolvimento e propagação das tecnologias da informação, o mundo empresarial
e, em geral, as instituições têm maiores possibilidades de realizar processos descentralizadores
e aumentar a flexibilidade dos modelos organizativos, sem chegar a perder o
controle e a direção.
A informatização permite reduzir, o
excesso de burocracia vertical da maioria das fábricas e, em geral, de qualquer
tipo de instituições, propiciando uma maior horizontalidade e, ao mesmo tempo,
o aproveitamento do saber e da experiência de trabalhadores e trabalhadoras.
Quando a complexidade e a incerteza são
características pecualiares da sociedade na qual vivemos, a flexibilidade
transforma-se em dimensão essencial dos modelos de produção e comercialização,
contando com o apoio conjunto de potentes redes de telecomunicações, maquinaria
programável e controlável por computador, bem como rodovias e meios de
comunicação muito velozes.
A flexibilidade e polivalência da classe
trabalhadora possibilita que uma mesma pessoa seja responsável pelo manejo e
controle de várias máquinas, ao contrário do. modelo fordista no qual devia
atender apenas a uma tarefa. Agora trabalhadores e trabalhadoras gozam de
grande autonomia, tanto para a criação de equipes de trabalho como para
assumir diversas funções, que vão de tarefas de inspeção e manutenção até a
limpeza. A flexibilidade também afeta salários e horários de trabalho. No
tocante aos salários, incentiva-se a produtividade e a formação contínua de
empregados e empregadas, bem como o tempo de serviço na empresa (para não
desperdiçar a experiência prática e os conhecimentos acumulados por cada
pessoa), mediante incentivos econômicos.
Na filosofia toyotista existe uma
organização e reorganização do trabalho de acordo com os princípios de
flexibilidade horizontal e vertical e de multifuncionalidade. Pode-se afirmar
que existe uma importante redescoberta do interesse da pessoa trabalhadora como
elemento-chave da rentabilidade e competitividade da empresa; existe o
convencimento de que, sem sua cooperação e compromisso, é impossível aumentar a
produtividade e melhorar a qualidade.
De todos modos, o toyotismo possui um
perigo inerente: o de reduzir-se a uma espécie de taylorismo interiorizado,
embora não estejam previstas tarefas corriqueiras e excessivamente rotineiras,
nem um forte e visível controle burocrático e disciplinar no ápice de um
modelo organizativo piramidal. Mas para melhorar a produção pode-se recorrer a
estratégias como eliminar movimentos inúteis e padronizar e simplificar
bastante os processos, tratando de evitar tarefas complicadas para não perder
tempo.
Como declara Giuseppe Bonazzi (1993, p.
13), “é difícil discernir a sutil linha que separa, por um lado, a participação
voluntária e, pelo outro, a interiorização obsessiva da auto-exploração”.
Não devemos esquecer o forte ataque e
destruição dos sindicatos independentes na década de 50, efetuados pelas
empresas japonesas que implantavam este modelo de organização do trabalho e da
produção. O patronato japonês dedicou-se a criar sindicatos colaboracionistas e
chegou a recorrer à polícia para impor sua ordem. Naquele momento surgiu a
figura do sindicato de fábrica, corporativista, totalmente identificado com os
interesses da mesma. As greves deixam de existir, pois os sindicatos são
controlados pela empresa, já que ocupar cargos em tais sindicatos é uma das
maneiras de obter melhores postos de trabalho e ganhar melhores salários. Ao mesmo
tempo, há uma maciça redução de pessoal, que se agrupa em pequenas células de
produção com uma filosofia muito competitiva, o que dificulta ainda mais as
reivindicações coletivas.
Outra característica importante dos
modelos toyotistas é a ocultação das hierarquias de poder, mas estas são reais;
no fundo, o que se discute são os meios e formas de obter determinados
produtos, mas os verdadeiros objetivos empresariais ficam à margem da classe
trabalhadora: o que se produz, a quantidade, o porquê, quando e onde. Nos
modelos empresariais descentralizados, a delegação de poder ocorre apenas até
determinados limites e, ao mesmo tempo, os controles tornam-se mais difusos e
ocultos.
Apesar disso, acho importante esclarecer
que não estou afirmando que o fordismo desapareceu; ao contrário, continua
desenvolvendo-se e reformulando-se, e é possível ver este modelo de organização
do trabalho junto a outros de inspiração ohnonista, com maior preocupação por
modelos de produção flexíveis, em uma mesma empresa, especialmente se esta
tiver filiais em países diferentes (Carrillo, J., 1994).
ALGUMAS
|
INFLUÊNCIAS DOS MODELOS EMPRESARIAIS NOS
SISTEMAS EDUCACIONAIS
Na década de 60, eram freqüentes as
metáforas e comparações da escola com as fábricas, sobretudo entre aqueles que
apoiavam modelos positivistas e tecnológicos de organização e administração
escolar. A linguagem, conceitos e práticas normalmente utilizados na
indústria, como “direção por objetivos”, “management científico”,
“taxionomias de objetivos operacionais”, etc., passam a ser habituais nos
tratados de pedagogia e nos programas das Escolas de Magistério e Faculdades de
Ciências da Educação. Esta nova linguagem incorpora os valores e
pressuposições do mundo empresarial do capitalismo.
Cada vez mais, as instituições escolares
passam a ser vistas da mesma maneira que as empresas e mercados econômicos. As
análises e instrumentos analíticos para compreender as dinâmicas emprésariais
e mercantis vão adquirindo maior relevância na hora de julgar os sistemas
educacionais.
Se durante todo este século pudemos
constatar que os sistemas educacionais não permaneceram indiferentes ante as
mudanças nos modos de produção e gestão empresariais (Apple, M.W., 1986;
Gimeno, J., 1982; Torres, J., 1991), é lógico pensar que as soluções
propugnadas pelo toyotismo também tenham deixado sua marca no sistema
educacional.
Para compreender as reformas e inovações
educacionais é preciso desvelar as razões e discursos nos quais se baseiam.
Tanto as políticas de reforma educacional oriundas da Administração como as
modas pedagógicas estão impregnadas de discursos, ideais e interesses gerados
e compartilhados por outras esferas da vida econômica e social.
Se as crises nos modelos de produção e
distribuição capitalista vão sendo resolvidas gradualmente, em um primeiro
momento mediante a aplicação de princípios tayloristas e fordistas, e
posteriormente com novas aclaptaçõcs e mesmo, atualmente, com a gestação de
novas fórmulas como o toyotismo, é previsível pensar que algo semelhante pode
estar ocorrendo também nos sistemas escolares. Cada modelo de produção e
distribuição requer pessoas com determinadas capacidades, conhecimentos,
habilidades e valores; e sobre isto os. sistemas educacionais têm muito a
dizer.
Os novos modelos de produção industrial,
sua dependência das mudanças de ritmo nas modas e necessidades preferidas
pelos consumidores e consumidoras, as estratégias de competitividade e de
melhora da qualidade nas empresas, exigem das instituições escolares
compromissos para formar pessoas com conhecimentos, destrezas, procedimentos e
valores de acordo com esta nova filosofia econômica.
Durante a década de 80, as fortes críticas
do mundo empresarial às instituições escolares e especialmente à Formação
Profissional converteram-se em algo cotidiano. Deste modo, o governos
socialista foi obrigado a realizar uma reforma do sistema educacional espanhol
para poder preparar futuros trabalhadores e trabalhadoras para ajustar-se às
novas filosofias da produção e às conseqüentes transformações dos postos de
trabalho.
Conseqüentemente, a grande importância que
os discursos oficiais dos Ministérios e Secretarias da Educação vêm outorgando
a algumas linguagens pedagógicas pode ser relida e interpretada também a
partir de uma certa filosofia próxima ao ohnonismo.
Penso que numerosas propostas pedagógicas
que estão sendo divulgadas por instâncias ministeriais pertencentes ao próprio
Governo, que atualmente também está contribuindo com a flexibilização dos mercados
de trabalho, adquirem sentido se levarmos em consideração esta interdependência
entre a esfera econômica e a educacional. Conceitos e propostas como as de
“descentralização”, “autonomia dos centros escolares”, “flexibilidade dos
programas escolares”, “liberdade de escolha de instituições docentes”, etc.,
têm sua correspondência na descentralização das grandes corporações
industriais, na autonomia relativa de cada fábrica, na flexibilidade de
organização para ajustar-se à variabilidade de mercados e consumidores, nas
estratégias de melhora de produtividade baseada nos círculos de qualidade, na
avaliação e supervisão central para controlar a validade e o cumprimento dos
grandes objetivos da empresa, etc.
A flexibilidade organizativa
promovida para organizações e programas escolares pode ser uma conseqüência da
defendida no mundo empresarial; da flexibilidade exigida para que as empresas
possam adaptar-se rapidamente às necessidades detectadas nos mercados.
Da
mesma maneira que na filosofia toyotista existe uma notável exaltação da figura
do trabalhador, também na educação os discursos são unânimes sobre a importância decisiva da classe
docente. Assume-se que, sem sua
cooperação, nenhuma inovação pode ser bem-sucedida. As tentativas mais
fordistas de confiar na tecnologia para “suprir” déficit de formação ou falta
de cooperação são agora consideradas ineficazes.
Segundo
afirma a própria Administração, a qualidade dos processos educacionais é
impossível sem o compromisso dos professores. Mas, no fundo, talvez pretenda-se
apenas circunscrever o âmbito do que pode ser pensado por professores,
professoras, e estudantes às dimensões metodológicas
e de organização das instituições escolares, mas não à análise crítica dos
conteúdos e finalidades dos níveis educacionais e, em geral, do sistema escolar.
A liberdade de mercados do mundo econômico
está sendo transferida também para o âmbito da educação. Aqueles que apostam em
modelos capitalistas como os que comentamos exigem e defendem que a Liberdade
dos consumidores também se reflita na liberdade de escolher CEPs e corpo
docente. Isto explica o forte impulso que os países com governos mais
conservadores estão dando à elaboração de “padrões de qualidade” para analisar
o sistema educacional, como se estivéssemos falando de fábricas e mercados.
Como frisam Stephen Murgatroyd e Colin
Morgan (1993, p. 44), do mesmo modo que a revolução industrial criou novas
modalidades de trabalho nas manufaturas do século passado, a revolução da
qualidade está originando novas formas de trabalho em todas as organizações
dos anos 90.
Pretende-se garantir esta aposta na
qualidade programando um conjunto de padrões ou exigências de qualidade
propostas por grupos de pessoas especializadas em Administração Educacional.
No entanto, devemos ressaltar que esta introdução
da flexibilidade curricular, autonomia das instituições escolares, necessidade
de maior formação e atualização dos professores etc., faz parte das velhas
reclamações dos grupos docentes e sindicais mais progressistas. Desde o início,
os MRPs vêm propugnando estas medidas. Com o reconhecimento destas
reivindicações pelas políticas da Administração, pelo menos em numerosos
discursos teóricos, abrem-se possibilidades reais de intervir em um
espaço prático que podem ser aproveitadas pelo corpo docente, estudantes e
grupos sociais comprometidos com a educação, assim como pela sociedade em
geral, para melhorar a qualidade do sistema educacional. Podem ser criadas
dinâmicas de participação que levem à democratização real de suas estruturas, à
revisão crítica dos conteúdos, valores e habilidades construídos e
reconstruídos por estudantes e professores nas salas de aula e instituições
educacionais.
Resta saber se esta nova linguagem é real,
fruto de uma verdadeira confiança na participação democrática, ou se é apenas
uma mudança de linguagem, até convertê-la em um simples conjunto de slogans sem
qualquer conteúdo.
Conceitos como ensino globalizado,
interdisciplinariedade, participação, democracia, trabalho em equipe,
abrangência, autonomia, etc., podem acabar perdendo sua riqueza original e
reduzir-se a frases feitas. Deste modo estaria sendo traído o compromisso de
numerosos grupos docentes MRPs, sindicatos, etc., com a defesa da filosofia de
fundo de tais conceitos.
Assim, alguns exemplos que reafirmam este
tipo de dúvidas são: a falta de um compromisso sério com as reformas
educacionais na medida em que ao mesmo tempo não se aprova uma lei de
financiamento que possa garantir minimamente seu desenvolvimento; a criação de
um Instituto Nacional de
Qualidade e Avaliação do Sistema
Educacional pelo Ministério da Educação e Ciência que pode reforçar uma maior
centralização frente adiscursos oficiais de descentralização, especialmente se
começarem a ser elaborados indicadores para julgar o grau de cumprimento do
PCB. Deste modo, a filosofia de responsabilidade, democratização e autonomia
dos CEPs limitar-se-ia apenas a questões de menor importância pois no fim
haveria que competir no mercado estatal, comparando os resultados conseguidos
por cada centro com a lista de indicadores elaborada pela equipe de pessoas
designadas pelo Ministério da Educação e Ciência. O discurso da autonomia pode
reduzir-se apenas à liberdade de escolha de estratégias para obter os objetivos
impostos pelas estruturas centrais do sistema educacional. Os “círculos de
qualidade” constituídos pelas equipes pedagógicas de cada centro escolar teriam
sua capacidade de ação delimitada por indicadores daquilo que devem conseguir,
para cuja definição não contribuíram.
Não podemos esquecer que qualquer sistema
de indicadores é fruto de uma determinada ideologia; traduz os resultados que
cabe esperar das instituições escolares a partir de uma concepção de valores
específica. Além disso, na medida em que se pretende impor em todo o Estado
espanhol uma realidade plurinacional, pluricultural e plurilingüística, existe
o perigo de estar reforçando, mesmo sem se ter esta intenção, uma uniformização
que contradiz a realidade desta diversidade de povos e culturas.
Poucas vezes ao longo da história foi tão
urgente posta em uma educação verdadeiramente comprometida com valores de
democracia, solidariedade e crítica, se quisermos ajudar cidadãos e cidadãs a
enfrentar essas políticas de flexibilidade, descentralização e autonomia
propugnadas nas esferas trabalhistas. É preciso formar pessoas com capacidade
de crítica e solidariedade, se não quisermos deixá-las ainda mais indefesas.
Enquanto isso, professoras, professores,
estudantes e grupos sociais convencidos do valor da educação, apesar de todo
tipo de obstáculos, continuarão abrindo novas brechas, desenvolvendo práticas
educacionais mais democráticas, nas quais garotos e garotas pertencentes a
grupos sociais não-hegemônicos não serão discriminados.
GLOBALIZAÇÃO E
INTERDISCIPLINARIDADE
Jurjo Torres Santomé
Todo projeto curricular pode organizar-se
de diversas formas, e não somente por disciplinas, como tem ocorrido. De
qualquer modo, sempre será necessária uma reflexão prévia sobre as razões e as
conseqüências das soluções pelas quais se optou. Globalização e
interdisciplinaridade propõe-se a servir de ajuda nessa escolha. O autor
analisa a base ideológica, filosófica, científica e profissional que permeia o
discurso e as práticas de organização das tarefas escolares baseadas em
disciplinas e estuda as alternativas que podem ser oferecidas a esse modelo
dominante, apresentando conceitos como a globalização, a interdisciplinaridade,
os temas transversais, a educação mundial, os projetos, os centros de
interesse, etc. Jurjo Torres reacende um debate sobre todas essas questões num
momento em que também existe o perigo de que a globalização, a
interdisciplinaridade e o currículo integrado, como estratégia organizadora e
metodológica, sejam reduzidos a um simples slogan ou a conceitos sem
conteúdo.
Levando em consideração o trabalho prático
e reflexivo de professores em sala de aula, este livro oferece numerosas
sugestões práticas para facilitar a elaboração de propostas de trabalho de
caráter integrado e de unidades didáticas, sendo útil tanto para professores de
educação infantil como de ensino médio, bem como a toda pessoa interessada em
oferecer alternativas para a melhor qualidade do sistema educacional.
Editora ETVED
PSICOLOGIA E CURRÍCULO
Uma aproximação
psicopedagógica à elaboração do currículo escolar
Editora Ática
2
OS FUNDAMENTOS
DO CURRÍCULO
Os problemas relacionados com o currículo
não são, é claro, os únicos a resolver quando se faz uma reforma educacional;
esta também deve contemplar muitos outros fatores igualmente determinantes, em
maior ou menor medida, do grau de sucesso ou fracasso do empreendimento. A
importância crucial das questões curriculares, no entanto — não só na etapa de
planejamento mas também na fase de execução -, converte-as em um dos pilares
fundamentais de qualquer reforma educacional. De fato, no currículo,
concretiza-se e toma corpo uma série de princípios de índoles diversas — ideológicos,
pedagógicos, psicopedagógicos — que, em conjunto, mostram a orientação
geral do sistema educacional. Entre outras coisas, a elaboração de um projeto
curricular pressupõe a tradução de tais princípios em normas de ação, em
prescrições educativas, para elaborar um instrumento, útil e eficaz na prática
pedagógica. O currículo é um elo entre a declaração de princípios gerais e sua
tradução operacional, entre a teoria educacional e a prática pedagógica, entre
o planejamento e a ação, entre o que é prescrito e o que realmente sucede nas
salas de aula. É lógico, portanto, que a elaboração do currículo ocupe lugar
central nos planos de reforma educacional e que freqüentemente ele seja
considerado como ponto de referência para guiar outras atuações (por exemplo,
formação inicial e permanente do corpo docente, organização dos centros de
ensino, confecção de materiais didáticos etc.) e assegurar, em última
instância, a coerência das mesmas.
Nas páginas seguintes, exporemos os
fundamentos e as opções básicas subjacentes ao modelo de currículo proposto. Na
medida em que o currículo traduz e concretiza a orientação geral do sistema
educacional, o primeiro ponto explicita e justifica brevemente o conceito de
educação, bem como suas relações e vinculações com outros conceitos próximos,
sobre-tudo os de desenvolvimento, cultura e escolarização. Para situar o
currículo no contexto da escolarização, é necessário precisar o que se entende
por currícttio, determinar suas funções e identificar seus elementos
principais, pois o significado e a extensão do termo variam muito conforme os
autores orientações teóricas; esse é o objetivo do segundo ponto. No terceiro,
são consideradas as fontes do currículo, isto é, o tipo de informação que se
deve considerar na sua elaboração. Em grande parte, essas informações são
específicas para cada currículo, pois variam em função tio lugar e do momento
(as informações originadas na sociologia da educação, por exemplo) ou do nível
educacional e da idade dos alunos (como as informações originadas na natureza e
estrutura do conteúdo da
aprendizagem). Existe, entretanto, um conjunto de informações, provenientes da
análise psicológica dos processos de desenvolvimento e aprendizagem, uqe são
relativamente gerais e, pois, merecem um tratamento específico numa proposta de
modelo curricular que abranja todo o ensino obrigatório; por isso, no quarto
ponto, são analisadas separadamente as contribuições da psicologia ao
currículo. No quinto e último pontos, a exposição dos fundamentos da proposta
é encerrada com argumentos a favor de um modelo de currículo aberto e flexível,
cujos vários níveis de concretização possibilitem potencializar ao máximo sua
utilização e eficácia.
DESENVOLVIMENTO, CULTURA, EDUCAÇÃO E ESCOLARIZAÇÃO
Provavelmente não haverá divergências entre os profissionais
da educação se afirmarmos que sua finalidade primordial é promover o
crescimento dos seres humanos. Mas com certeza elas surgirão no momento de
definir e explicar em que consiste o crescimento educativo e, sobretudo, de
decidir as ações pedagógicas mais adequadas para promovê-lo. A disjuntiva
básica ocorre entre aqueles que o fundamentam como o resultado de um processo
de desenvolvimento, em grande parte interno à pessoa, e os que o concebem mais
como o resultado de um processo de aprendizagem, em grande parte externo à
pessoa.
Na verdade, o crescimento pessoal e
social, intrínseco à idéia de educação, pode vincular-se alternadamente tanto
ao processo de desenvolvimento como ao de aprendizagem. Por um lado, uma pessoa
educada é uma pessoa que se desenvolveu, que evoluiu, no sentido forte
do termo, desde níveis inferiores de adaptabilidade ao meio físico e social até
níveis superiores. Por outro, como lembra acertadamente Calfee (1981), uma
pessoa educada é a que assimilou, que interiorizou, em suma, que aprendeu, o
conjunto de conceitos, explicações, habilidades, praticas e valores que
caracterizam uma cultura determinada, sendo capaz de interagir de forma
adaptada com o ambiente físico e social no seio da mesma. A opção por uma das
duas interpretações do crescimento educacional é importante, porque propõe
ações pedagógicas diferentes que se plasrnam no currículo.
Embora antiga, a controvérsia foi
incentivada, nas décadas de 1960 e 1970, pelo auge do enfoque
cognitivo-evolutivo inspirado na teoria genética de J. Piaget e por suas
aplicações ao campo da educação sugeridas por alguns dos seus partidários.
Kohlberg, por exemplo, num trabalho clássico publicado em 1968 sob o título de
“Early Education: a cognitive developmental view”, formulava a tese de que os
aprendizados específicos promovidos por muitos programas pré-escolares, apesar
de parecerem positivos à primeira vista — isto é, apesar de se poder constatar
uma aprendizagem efetiva nas crianças provavelmente repercutem escassa ou
nulamente sobre seu desenvolvimento a médio ou longo prazos. Segundo Kohlberg, a exposição das crianças pré-escolares a
situações não-especificas de aprendizagem, como as que sugere a teoria genética
de Piaget (com profusão de conflitos cognitivos, manuseio direto de objetos
etc.), situações que põem em jogo as operações básicas da inteligência e da
competência operacional, são mais apropriadas para induzir ou provocar efeitos
positivos a médio) e longo prazo sobre o crescimento educativo.
Nessa interpretação do enfoque
cognitivo-evolutivo, o crescimento que a ação pedagógica deve potencializar é
visto mais como o progresso
que segue as linhas naturais do desenvolvirnento que o que depende de
aprendizagens específicas. De fato, a tese de Kohlberg faz parte de urna
tradição de pensamento segundo a qual os esforços para ensinar conteúdos ou
habilidades específicas são, até certo ponto, fúteis. O que importa é a
competência cognitiva geral e reforçá-la é a única coisa que a educação pode e
deve fazer, submetida às leis gerais do desenvolvimento; no caso concreto que
estamos tratando, sobre as leis gerais do desenvolvimento operatório.
Os anos 1970 foram pródigos em currículos
e progra mas para a pré-escola e para o
ensino básico (Kamii, 1970; Lawson, 1975; Karplus, 1979; etc.) inspirados no
enfoque cognitivo-evolutivo, que parte do principio de que a finalidade última
da educação formal é promover o maior avanço possível dos alunos na seqüência
evolutiva das etapas operatórias (em nível pré-escolar, a operatividade
concreta; no ensino básico, a operatividade formal). Chegar a ser educado, como
frisa D. Kuhn (1979), equipara-se, assim, a atingir o nível mais elevado numa
seqüência de etapas evolutivas.
As teorias estruturais do desenvolvimento
(a de Piaget é a mais conhecida, mas algo semelhante ocorre com as de Werner,
Kohlberg e outras) postulam direções e níveis universais do desenvolvimento que
podem ser adotados com fins educativos, isto é, que podem ser tomados como
modelo do que deve ser o crescimento pessoal promovido pela educação formal.
Essa colocação encontra-se explicitamente formulada no artigo) programático de
Kohlberg e Mayer publicado em 1972 com o significativo título de “Development
as the aim of education”. Segundo os autores, a psicologia do desenvolvimento
constitui o “único” ponto de partida aceitável para formular metas
educacionais, porque elimina “o incômodo problema da pluralidade de valores; a
seqüência de etapas do desenvolvimento permite estabelecer fins educativos
“livres de valoração” na medida em que representam uma progressão que ocorre
“de maneira natural”. Acrescente-se que esta forma de proceder com freqüência é
considerada um antídoto à função reprodutora e conservadora da educação formal
(Delval, 1983), que enfatiza aprendizagens específicas.
Do ponto de vista da alternativa que
interpreta o crescimento educativo como resultado de aprendizagens
específicas, critica-se o enfoque cognitivo-evolutivo e denuncia-se o caráter
circular de seus argumentos: se as aprendizagens específicas introduzissem
modificações nos universais do desenvolvimento cognitivo (as estruturas
operatórias), estes deixariam de ser universais; o que os define como tais é
precisamente sua relativa impermeabilidade à influência de fatores ambientais
específicos. Bereiter (1970), numa réplica à tese de Kohlberg e à colocação
cognitivo-evolutiva em geral, acusa-o de cometer um erro “de categoria”, que
consiste em identificar o crescimento educativo com as mudanças das pessoas
relacionadas ao desenvolvimento dos universais cognitivos e, portanto, pouco
influenciáveis pela ação educacional direta.
O enfoque de Kohlberg, argumenta Bereiter,
identifica crescimento educacional com mudanças naturais: segundo a teoria
genética, é inexorável - desde que não
ocorram transtornos graves ou fortes carências de estimulação ambiental - que os seres humanos progridam da etapa
sensorial-motor para a das operações concretas e desta para a etapa
das operações formais. Assim, se estivermos interessados, por exemplo, em
promover a educação pré-escolar, será absurdo propor a meta de que as crianças
atinjam a etapa das operações concretas, pois elas a atingirão de qualquer
forma, sem necessidade de ajudas específicas, já que se trata de um dos
universais do desenvolvimento cognitivo. Se quisermos melhorar a capacidade intelectual
dos pré-escolares e, em geral, promover seu crescimento educativo, devemos
canalizar mais os esforços para a aprendizagens que possam ocorrer ou não em
função de sua participação em determinados tipos de experiências. O Crescimento
educativo refere-se, em primeiro lugar, às mudanças das pessoas manifestamente
suscetíveis de ser provocadas ou facilitadas mediante uma ação pedagógica
direta.
O argumento tem adquirido força nos
últimos anos, entre partidários da tradição da teoria genética. Assim, por
exemplo, Eleanor Duckworth, discípula de Piaget, que participou da elaboração
de um interessante programa de ensino de ciências - o African Primary
Science Program - retomou a polêmica em sugestivo trabalho intitulado “Ou lhes
ensinamos cedo demais e não podem aprendê-lo ou demasiado tarde e já
sabem: o dilema de aplicar Piaget” (Duckworth, 1979). A tese da autora é que
configura um falso dilema. Afirma que o problema reside no fato de que se
comete um erro com relação ao quid da educação; às vezes, e buscando a
justificativa na teoria de Piaget, afirma-se que a educação deve consistir
apenas em promover a aquisição de estruturas cognitivas. Segundo a teoria de
Piaget, contudo, essas mudanças seriam as únicas com as quais a educação não
teria de preocupar-se, pois, deixando as crianças seguirem seu próprio ritmo e
garantindo-lhes uma quantidade suficiente de experiências não-específicas,
essas aquisições se produzem com a mesma naturalidade com que se aprende a
caminhar ou falar. Para Duckworth, o quid da educação não está no
favorecimento do desenvolvimento natural, mas na promoção do maior número
possível de conhecimentos - tanto em amplitude como em profundidade -, levando
em consideração as potencialidades intelectuais do aluno, pois não adquirirá
estes conhecimentos sem uma ação pedagógica direta.
Em resumo, a controvérsia na interpretação
do crescimento educativo é colocada nos seguintes termos: enquanto o enfoque
cognitivo-evolutivo considera que a meta primordial da educação deve ser
promover, facilitar ou, no máximo, acelerar os processos naturais e universais
do desenvolvimento, o enfoque alternativo considera que a educação deve ser
orientada mais à promoção e facilitação tias mudanças que dependem da
exposição a situações específicas de aprendizagem.
Em nossa opinião, ambas as posturas contêm
parte de verdade, porém traduzem igualmente uma maneira incorreta de entender
as relações entre aprendizagem e desenvolvimento, que deve ser superada. Nos
dois casos, os processos de desenvolvimento e de aprendizagem são considerados
quase independentes; atribuem-se quase que exclusivamente os primeiros a uma
dinâmica interna da pessoa e os segundos, a urna pressão externa. A diferença
reside na ênfase dada, mas nas duas posturas pressupõe-se que a única relação
entre eles é de tipo hierárquico: a aprendizagem subordina-se ao
desenvolvimento, ou o desenvolvimento subordina-se à aprendizagem.
A idéia de que existem processos
evolutivos e processos de aprendizagem quimicamente puros deve, no entanto, ser
rejeitada, porque contradiz algumas contribuições recentes da pesquisa
psicológica. As pesquisas antropológicas e transculturais têm manifestado,
segundo Scribner e Cole (1973), “a universalidade das capacidades cognitivas
básicas” (a capacidade de generalizar, recordar, formar conceitos, raciocinar
logicamente etc.) em todos os grupos culturais estudados. As mesmas pesquisas (Cole et alii, 1971;
Cole e Scribner, 1974; etc.), entretanto, ressaltam diferenças na maneira de
utilizar essas capacidades em situações concretas de resolução de problemas; e,
o que é mais interessante, mostram que essas diferenças estão relacionadas com
os tipos de experiências educacionas. Tudo parece sugerir que existem alguns
universais cognitivos, porém o fato de serem efetivamente postos em geral
depende da natureza dos aprendizados específicos propiciados pelas experiências
educativas.
A partir dessa constação, inspirando-se
fortemente, por um lado, nos trabalhos pioneiros de Vygotsky, Luria e Leontiev,
e, por outro, na pesquisa antropológica, surgiu uma nova proposta (Cole, 1981a;
1981b) que supera a controvérsia descrita e reconcilia em um esquema
explicativo integrador os processos de desenvolvimento individual e o
aprendizado da experiência humana culturalmente organizada (o que denominamos
de aprendizagens específicas). O conceito de educação subjacente ao modelo de
currículo proposto é tributário dessa proposição, cuja idéia básica
consiste na rejeição da tradicional separação entre o indivíduo e a sociedade,
que costuma ser introduzida pela análise psicologica.
Nesta ótica, todos os processos
psicológicos que configuram o crescimento de uma pessoa - tanto os habitualmente
considerados evolutivos como os atribuídos, também habitualmente, a
aprendizagens específicas - são fruto da interação constante que mantém com um
meio ambiente culturalmente organizado. A interação do ser humano com
seu meio está intermediada pela cultura desde o próprio momento do nascimento,
sendo os pais, os educadores, os adultos e, em geral, os outros seres humanos
os principais agentes mediadores. Graças às suas múltiplas oportunidades de
estabelecer relações interpessoais com os agentes mediadores, o ser humano pode
desenvolver os processos psicológicos Superiores - sua competência
cognitiva -, porém tais processos sempre aparecem em primeiro lugar na vida de
uma pessoa no plano da relação interpessoal e, conseqüentemente, sofrem a mediação
dos padrões culturais dominantes. O crescimento pessoal é o processo pelo qual
o ser humano torna sua a cultura do grupo social ao qual pertence, de tal forma
que, neste processo, o desenvolvimento da competência cognitiva está fortemente
vinculado ao tipo de aprendizagens específicas c, em geral, ao tipo de práticas
sociais dominantes.
Para evitar mal-entendidos vamos precisar
rapidamente que o conceito de cultura é utilizado aqui em um sentido
muito amplo, próximo ao da antropologia cultural. A Cultura, de acordo com
Cole e Wakai (1984, p. 6-7), engloba múltiplos aspectos: conceitos,
explicações, raciocínios, linguagem, ideologia, costumes, valores, crenças,
sentimentos, interesses, atitudes, pautas de comportamento. tipos de
organização familiar, profissional, econômica, social, tecnológica, tipos de
hábitat etc. No decorrer da sua história, os grupos sociais encontraram
numerosas dificuldades e geraram respostas coletivas para poder superá-las; a
experiência assim acumulada configura sua Cultura.
Chegamos, assim, ao conceito de Educação,
que desempenha um papel central no esquema explicativo, porque permite
compreender corno se articulam num todo unitário a Cultura e o desenvolvimento
individual. Os grupos sociais ajudam seus membros a assimilar a experiência
culturalmente organizada e a converter-se, por sua vez, em membros ativos e em
agentes de criação cultural, ou, o que é a mesma coisa, favorecem seu
desenvolvimento pessoal no seio da cultura do grupo, fazendo-os participar de
um conjunto) de atividades que, consideradas globalmente, constituem o que
chamamos de Educação.
Assim, a Educação designa o conjunto de
atividades mediante as quais um grupo assegura que seus membros adquiram a
experiência social historicamente acumulada e culturalmente organizada.
Recordemos novamente que os instrumentos cognitivos de natureza simbólica e
seus usos, os processos psicológicos superiores, fazem parte desta experiência.
As atividades educativas adotam diferentes modos de organização social conforme
o volume e também o conteúdo concreto do conhecimento cultural.
No caso
das sociedades primitivas por exemplo, um escasso nível de desenvolvimento
científico e tecnológico, como algumas tribos de caçadores ou de pescadores
estudadas pelos antropólogos, as atividades habituais dos adultos. A aquisição
das pautas culturais pela criança – conhecimentos, conceitos, habilidades,valores,
costumes etc. é feita através da sua participação, na medida do possível, das
atividades dos adultos, ou simplesmente por observação e imitação. No outro
extremo, encontramos as atividades educativas típicas das sociedades com maior
nível de desenvolvimento científico e tecnológico, que apresentam uma
organização social muito mais complexa: são atividades nitidamente
diferenciadas das atividades habituais dos adultos, correspondem a intenções
próprias e geralmente são efetuadas em instituições especificamente habilitadas
para esse fim (as escolas e outros centros educacionais) O conceito de
escolarização (Schooling) designa esta subcategoria de atividades educativas em
cujo contexto, por outro lado, a questão do currículo do ensino obrigatório
adquire plena significação.
Nas
paginas seguintes, nos referiremos exclusivamente à escolarização, mas não
devemos esquecer que as atividades educativas dessa natureza não são de forma
alguma as únicas presentes em nossa sociedade. Com elas, encontramos outras
atividades igualmente importantes (na educação familiar, na educação
extra-escolar, na educação impulsionada pelos meios de comunicação social
etc.), que também deveriam ser consideradas na análise holística do fenômeno
educativo.
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O
CONCEITO DE CURRÍCULO
Que papel desempenha o currículo nas
atividades educativas escolares? Que elementos inclui? Em definitivo, que é o
currículo? Esta pergunta é realmente difícil de responder, pois, na prática,
cada especialista tem sua própria definição com nuanças diferenciais.
Evitaremos o debate sobre que é o currículo, limitando-nos a precisar o que
se entende por currículo na proposta e aceitando que existem outras
concepções diferentes da que aqui se contempla, porém sem polemizar. O caminho
que leva a formulação de uma proposta curricular é muito mais o fruto de uma
série de decisões sucessivas que o resultado da aplicação de alguns princípios
firmemente estabelecidos e unanimemente aceitos. Conseqüentemente, o que importa
é justificar e argumentar sobre a solidez das decisões que vamos tomando e,
sobretudo, velar pela coerência do conjunto.
O caminho mais direto para precisar o que
entendemos por currículo consiste em interrogar-nos sobre as funções que ele
deve desempenhar e, para identificá-las, convém recordar e ampliar o que
dissemos anteriormente a propósito da natureza das atividades educativas
escolares. Esta modalidade de educação surge quando a simples participação nas
atividades habituais dos adultos, bem como sua observação e imitação, não são
suficientes para assegurar aos novos membros do grupo um crescimento pessoal
adequado. As atividades educativas escolares correspondem à idéia de que
existem certos aspectos do crescimento pessoal, considerados importantes no
âmbito da cultura do grupo, que não poderão ser realizados satisfatoriamente
ou que não ocorrerão de forma alguma, a menos que seja fornecida uma ajuda
específica, que sejam exercidas atividades de ensino especialmente pensadas
para esse fim. São atividades que correspondem a uma finalidade e são executadas
de acordo com um plano de ação determinado, isto é, estão a serviço de um projeto
educacional. A primeira função do currículo, sua razão de ser, é a de
explicitar o projeto - as que intenções e o plano de ação - que preside as
atividades educativas escolares.
Enquanto projeto, o currículo é um guia
para os encarregados de seu desenvolvimento, um instrumento útil para orientar
a pratica pedagógica, uma ajuda para o professor. Por esta função, não pode
limitar-se a enunciar uma série de intenções, princípios e orientações gerais
que, por excessivamente distantes da realidade das salas de aula, sejam de
escassa ou nula ajuda para os professores. O currículo deve levar em conta as
condições reais nas quais o projeto vai ser realizado, situando-se justamente
entre as intenções, princípios e orientações gerais e a prática pedagógica. E
função do currículo evitar o hiato entre os dois extremos; disso depende, em
grande parte, sua utilidade e eficácia como instrumento para orientar de a ação
dos professores. O currículo, entretanto, não deve suplantar a iniciativa e a
responsabilidade dos professores, convertendo-os em meros instrumentos de
execução de um plano prévia e minuciosamente estabelecido. Por ser um projeto,
o currículo não pode contemplar os múltiplos fatores presentes em cada uma das
situações particulares no qual será executado (cf., mais adiante, a discussão
sobre currículos abertos e fechados).
Os componentes do currículo, os elementos
que ele contempla para cumprir com êxito suas funções, podem agrupar-se em
quatro capítulos.
1º
Proporciona informações sobre o que ensinar. Este capítulo inclui
dois temas: conteúdos (termo que designa aqui, em sua acepção mais ampla, o que
chamamos de “a experiência social culturalmente aceita”: conceitos, sistemas
explicativos, habilidades, normas, valores etc.) e objetivos (os processos de
crescimento pessoal que se deseja provocar, favorecer ou facilitar
mediante o ensino).
2º Proporciona informações sobre quando
ensinar,, sobre a maneira de ordenar e dar seqüência aos conteúdos e
objetivos. A educação formal abrange, com efeito, conteúdos complexos e
inter-relacionados e pretende incidir sobre diversos aspectos do crescimento
pessoal do aluno, sendo necessário, portanto, optar por uma determinada
sequência de ação.
3º Proporciona informações sobre como
ensinar, isto é, sobre a
maneira de estruturar as atividades de ensino/aprendizagem das quais
participarão os alunos, a fim de atingir os objetivos propostos em relação com
os conteúdos selecionados.
4º Proporciona informações sobre que,
como e quando avaliar. Na medida em que o projeto corresponde a
certas intenções, a avaliação é um elemento indispensável que assegura se a
ação pedagógica responde adequadamente às mesmas e introduz as correções
oportunas em caso contrário.
Os quatro capítulos estão relacionados
entre si e condicionam-se mutuamente, pois tratam de diferentes aspectos de um
mesmo projeto: enquanto o primeiro (que ensinar?) explicita as intenções, os
três restantes (quando ensinar?, como ensinar?, que, como e quando avaliar?)
referem-se mais ao plano de ação a ser seguido de acordo com elas. Um dos
problemas intrinsecos na elaboração do currículo reside em decidir como
concretizar esses diferentes elementos - mais tarde veremos que são várias as
alternativas possíveis - e em assegurar a coerência de todos eles.
Em resumo, entendemos o currículo como o
projeto que preside as atividades educativas escolares, define suas intenções e
proporciona guias de ação adequadas e úteis para os professores, que são
diretamente responsáveis pela sua execução. Para isso, o currículo proporciona
informações concretas sobre que ensinar,_quando ensinar, como ensinar e como e
quando avaliar. Em princípio, esta colocação está próxima da defendida por
autores como Stenhouse, para quem “Um currículo é uma tentativa de comunicar os
princípios e características essenciais de um propósito) educativo, de tal forma
que permaneça aberto à discussão crítica e possa ser efetivamente transladado à
prática” (1984, p. 29). Antes de continuar, no entanto, convém esclarecer
uma nuança com relação à extensão do currículo. Para alguns autores, entre os
quais Stenhouse, o curriculo inclui tanto a descrição do projeto educativo
quanto a análise empírica do que realmente sucede nas salas de aula, quando o
projeto é concretizado; isto explica, por exemplo, Que para Stenhouse o
currículo deva abranger, além dos componentes mencionados, uma série de
princípios para o estudo empírico da sua aplicação. É óbvio que existem dois
aspectos relacionados com o currículo, o Projeto ou Desenho Curricular e sua
aplicação, e que ambos estão intimamente ligados. Mas, a nosso ver, o problema
reside no fato de que, definido dessa maneira ampla, o currículo termina
abrangendo a totalidade de elementos da educação formal, perdendo assim seu
caráter específico e também sua operacionalidade. Por outro lado, resulta
difícil admitir que a análise empírica daquilo que realmente acontece nas salas
de aula possa ser reduzida ao desenvolvimento ou aplicação do currículo... a
menos que no mesmo sejam incluídos absolutamente todos os fatores que, de uma
forma ou de outra, incidam sobre a realidade escolar!
A seguir, e para frisar o caráter de projeto do currículo, manteremos a
diferença entre Projeto ou Desenho Curricular e Desenvolvimento
ou Aplicação do Currículo como duas fases da ação educativa que se
alimentam mutuamente, porém não se confudem.
Uma última precisão terminológica sobre os
conceitos de instrução e de currículo para terminar este item de considerações
gerais. O termo “instrução” habitualmente é utilizado, em sentido amplo, como
sinônimo de “educação formal” e de “escolarização”; e, em sentido estrito, para
referir-se aos componentes de metodologia do ensino, tanto em sua vertente de
projeto como de execução efetiva (Laska, 1984). O termo “currículo” às vezes
também é utilizado (por exemplo, Johnsou, 1 967; Novak, 1982) em sentido
muito mais limitado, para referir-se apenas aos objetivos e conteúdos da
educação formal. Assim, nossa maneira de entender o Projeto Curriicular inclui
tanto aspectos curriculares em sentido estrito (objetivos e conteúdos), como
aspectos de instrução (relativos a como ensinar).
AS FONTES DO CURRÍCULO
O primeiro
elo da complexa cadeia de inevitáveis problemas a enfrentar e resolver no
processo de elaboração de um Projeto Curricular refere-se às suas fontes. Onde
buscar a informação
conteúdos – e o plano de ação a seguir na educação
escolar? Tradicionalmente, as respostas consistiram em dar prioridade a um a
das possíveis fontes de informação em relação a todas as outras, seguindo modas
mais ou menos passageiras ou adotando pontos de vista reducionistas, sem
perceber que a complexidade e heterogeneidade de fatores que desembocam no
Projeto Curricular obrigam necessariamente a levar em conta ao mesmo tempo
informações de origem e natureza diferentes.
Já em 1949, em obra clássica sobre o tema,
R. Tyler ressalta, no tocante aos pontos suscetíveis de proporcionar informação
para selecionar “sabiamente” os objetivos — a afirmação que se pode
estender a todo o currículo —, que existe forte discrepância entre três
posturas defendidas respectiva-mente pelos “progressistas”, pelos
“essencialistas” e pelos “sociólogos”. Os primeiros destacam a importância de
estudar a criança a fim de descobrir seus interesses, seus problemas, seus
propósitos e suas necessidades, sendo esta a informação básica para selecionar
os objetivos. Os “essencialistas”, por seu lado, consideram que os objetivos
devem ser extraídos de urna análise da estrutura interna dos conteúdos do
ensino, das áreas de conhecimento. Por último, os “sociólogos” tendem a situar
a fonte de informação principal para selecionar os objetivos na análise da
sociedade, dos seus problemas, necessidades e caracerísticas. Não é difícil
vislumbrar por trás dessas posturas outras tantas alternativas ainda atuais que
dão primazia respectivamente à análise psicológica. à análise da estrutura
interna das disciplinas e à análise sociológica, como fontes do currículo.
O ponto de vista de Tyler sobre as fontes dos objetivos
educativos é o de que as três proporcionam informações necessárias, mas
nenhuma delas sozinha é suficiente. Essa perspectiva é igualmente válida para
o Projeto Curricular em seu conjunto. A análise sociológica permite, entre
outras coisas, determinar as formas culturais ou conteúdo — conhecimentos,
valores, habilidades, normas etc. — que o aluno deve assimilar para tornar-se
um membro ativo da sociedade e ao mesmo tempo um agente de criação cultural;
também permite garantir que não ocorra uma ruptura entre a atividade escolar do
aluno e sua atividade extra-classe A análise psicológica contribui com
informações relativas aos fatores e processos que intervêm no crescimento
pessoal do aluno, ajudando assim a planejar com mais eficácia a ação
pedagógica. A análise epistemológica das disciplinas contribui para separar os
conhecimentos essenciais rios secundários, para buscar sua estrutura interna e as relações entre eles, e suas
propostas são decisivas para estabelecer seqüências de atividades de
aprendizagem que facilitem ao máximo a assimilação significativa.
A essas três fontes do
currículo devemos acrescentar uma
quarta: a própria experiência pedagógica. Um Projeto Curricular não surge do nada — e muito menos no
caso do ensino obrigatório —,
mas parte de uma prática pedagógica que
aspira a transformar e melhorar. Para isso, oferece novos pontos de vista e
alternativas, mas também integra as expe riêncías
bem-sucedidas. Por outro lado, como projeto educativo que é, o Projeto
Curricular contrasta com a prática pedagógica e tem de estar permanentemente
aberto às modificações e correções derivadas desse contraste. O desenvolvimento
do currículo, e tomando a distinção anterior, é uma das fontes — talvez
a principal — do processo de elaboração, revisão e contínuo
enriquecimento do Projeto Curricular.
PSICOLOGIA E CURRÍCULO
Embora, como vimos, seja absolutamente imprescindível
utilizar informações provenientes de diferentes fontes na elaboração do
currículo, as que derivam da análise psicológica têm, a nosso ver, um
tratamento especial. Em primeiro lugar, porque, ao referir-se aos processos
subjacentes ao crescimento pessoal, sua pertinência está em grande parte
assegurada sejam quais forem o nível educacional correspondente ao Projeto
Curricular e as intenções concretas que o mesmo perseguir. Em segundo lugar,
porque incidem em maior ou menor medida sobre os quatro blocos de componentes
principais do currículo. Com efeito, as informações proporcionadas pela análise
psicológica são úteis para selecionar objetivos e conteúdos, para estabelecer
seqüências de aprendizagem que propiciem ao máximo a assimilação significativa
dos conteúdos e a consecução dos objetivos, para tomar decisões com respeito à
maneira de ensinar e, naturalmente, para avaliar se foram atingidos os
aprendizados prescritos na extensão e profundidade desejadas.
A questão das contribuições da
psicologia com relação ao currículo e, em geral, à educação escolar é muito
complexa e não pode ser abordada aqui com o detalhamento que exigiria um
tratamento correto. Nosso objetivo, muito menos ambicioso, consiste em
ressaltar alguns aportes de particular interesse para a elaboração do Projeto
Curricular e que, em qualquer caso, impregnam o modelo proposto. Assim,
esclarecemos que o que vem a seguir não passa de uma seleção e, como tal,
incompleta. A seleção não afeta apenas o volume de contribuições potenciais,
mas também sua orientação. No momento atual, a psicologia da educação ainda
não dispõe de um marco teórico unificado e coerente que permita dar conta dos
múltiplos e complexos aspectos implicados nos processos de crescimento pessoal
e da influência exercida sobre eles pelas atividades educativas escolares.
Ainda não dispomos de uma teoria compreensiva da instrução com base empírica e
Psicologia e currículo
apresenta um modelo de projeto currícular concebido para servir como
instrumento na tarefa de elaborar propostas curriculares dos ciclos e níveis de
educação escolar O modelo parte de uma discussão sobre a finalidade da
educação, as relações entre aprendizagem desenvolvimento e educação, e as
funções tio currículo no planejamento de ensino.
A partir de uma série de
colocações sobre estes e outros pontos e do pressuposto de que uma proposta
curricular deve integrar informações que tenham origem em fontes
socioantropológicas, disciplinares, pedagógicas e psicológicas, César Coll
apresenta uma estrutura para a elaboração de propostas curriculares que
reflitam os principais postulados da concepção construtivista de aprendizagem e
ensino.
Séries Fundamentos – Área de
Interesse do Volume
Educação e Pedagogia
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