quinta-feira, 23 de outubro de 2014

GLOBALIZAÇÃO E INTERDISCIPLINARIDADE: O Currículo Integrado



Jurjo Torres Santomé


CAPÍTULO I


AS ORIGENS DA MODALIDADE DE CURRÍCULO INTEGRADO



Entre os últimos conceitos incorporados ao vocabulário do corpo do­cente na Espanha, encontra-se o de “currículo transversal”. Aparece no Projeto Curricular Básico (PCB), e as pessoas não iniciadas nestas questões podem considerá-lo realmente novo. Até pouco tempo, porém, outros vocábulos traduziam filosofias bastante semelhantes. Termos como “interdisciplinaridade”, “educação global”, “centros de interesse”, “metodologia de projetos”, “globalização” (vocábulo que aparece tanto no PCB como na LOGSE — Lei Orgânica de Ordenação Geral do Sistema Educacional), foram seus predecessores.
Ao longo deste século a terminologia aparece, desaparece e reaparece com certa freqüência. Pode-se pensar que no fundo trata-se apenas do mesmo e eterno problema, que ainda não foi resolvido definitivamente: o   da relevância do conhecimento escolar. Nas análises efetuadas a partir do final do século passado e durante todo o século XX, sobre o significado dos processos de escolarização e, conseqüentemente, sobre os conteúdos culturais que se manejam nos centros de ensino, chama poderosamente a    atenção a denúncia sistemática do distanciamento existente entre a realidade e as instituições escolares. Como alternativa, torna-se a insistir na necessidade de que as questões sociais de vital importância, os problemas cotidianos, sejam contemplados no trabalho curricular nas salas de aula e escolas. E como estratégia para explicitar esta necessidade, utiliza-se um vocábulo que resume esta filosofia. Assim, no início deste século, aparecem os termos “método de projetos”, segundo William H. Kilpatrick, “centros de interesse”, segundo Ovide Decroly, “globalização”, etc.
Na hora de pesquisar o verdadeiro significado desta proposta, consi­dero imprescindível reconstruir o que estava acontecendo em outras esferas sociais, especialmente no mundo da produção. Essa revisão pode nos fornecer informação suficientemente significativa para aprofundar estes conceitos e chegar a compreender seu verdadeiro alcance. Dessa maneira, não será necessário mudar freqüentemente de nome, devido à coisificação do conceito ou sua distorção ou manipulação. Compreender a filosofia de fundo também ajuda a julgar as propostas e práticas etiquetadas com tais termos.
Não devemos esquecer que muitas vezes, para estar na moda ou cum­prir a legalidade, muda-se apenas a aparência das propostas; no fundo, porém, continua se fazendo a mesma coisa. A rica filosofia de conceitos como os que estamos mencionando pode acabar em mera rotina, em pro­postas técnicas, completamente alheias aos problemas que serviram de estímulo para sua formulação.

A POLÍTICA DE FRAGMENTAÇÃO DOS PROCESSOS DE PRODUÇÃO
                                                                                                                 
O movimento pedagógico a favor da globalização e da interdisciplinariedade nasceu de reinvidicações progressistas de grupos ideológicos e políticos que lutavam por urna maior democratização da sociedade. Pode        mos constatar que ocorre uma coincidência temporal, por exemplo, entre      os ataques que os movimentos sindicais do início do século dirigem contra as políticas trabalhistas e de produção planejadas sob os pressupostos de “um controle científico”, segundo os princípios daquilo que Frederick Winslow Taylor rotulou de “Management científico”, e, por outro lado, com os discursos de John Dewey e William H. Kilpatrick, exigindo uma         reconsideração completa, tanto da função como da prática da educação.
No início deste século ocorreu urna autêntica revolução no funcionamento dos sistemas de produção e distribuição no âmbito empresarial, revolução que possibilitaria processos de maior acumulação de capital e de meios de produção em muito poucas mãos. Uma das estratégias seguidas para a sua implantação radicava no barateamento da mão-de-obra e,
ao rnesmo tempo, na “desapropriação” dos conhecimentos que, com o decorrer do tempo, foram acumulados por trabalhadores e trabalhadoras.  Estes foram acusados de “vagabundagem sistemática” e logo após foram propostas medidas “científicas” de controle, que descompunham os processos de produção) em operações elementares, simples e automáticas. Nesta modalidade de gestão e produção foram colocados obstáculos que impediam que os trabalhadores participassem dos processos de tomada de de­cisões e de controle empresarial. Esta filosofia organizativa, que acentuava a divisão social e técnica do trabalho, aumentaria ainda mais a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual. Assim algumas pessoas pas­sam então a ser as que pensam e decidem, enquanto as outras obedecem; como escreve F.W. Taylor, “também é evidente que, na maioria dos casos, precisa-se de um tipo de homem para estudar e planejar um trabalho, e de outro completamente diferente para executá-lo” (Taylor, F.W., 1970, p. 53).
O resultado desta política de fragmentação dos empregos e da produ­ção fez com que as ações dos trabalhadores se tornassem bastante incom­preensíveis para eles mesmos, o que propiciou, conseqüentemente, o esta­belecimento de um controle mais férreo dos empresários sobre tudo o que se relacionasse com as decisões da produção e comercialização.
O aparecimento da linha de montagem na indústria automobilística, isto é, a organização e distribuição das tarefas em uma esteira transporta­dor a criada por Henry Ford (daí o nome de “fordismo” desta modalidade de organização do trabalho), contribuiu para reforçar ainda mais as políti­cas trabalhistas de desqualificação em favor de uma mecanização homogeneizadora. A utilização das linhas de montagem pressupõe a segmentação prévia de todas as operações que fazem parte da fabricação, neste caso, de um automóvel, de tal maneira que operários e operárías quase não precisam sair do lugar, pois as máquinas estão agrupadas con­forme sua ordem de uso e as esteiras transportadoras é que aproximam as pecas que devem ser trabalhadas ou montadas; isto permite obter uma sensível redução do tempo na rea1ização das tarefas. Os trabalhadores e trabalhadoras só devem acompanhar o ritmo e a cadência da esteira e efetuar tarefas muito concretas e fáceis. O próprio Henry Ford chegou a declarar que o trabalho que qualquer operário tem de realizar é tão fácil que “até o indivíduo mais estúpido pode aprender a executá-lo em dois dias”; nem mesmo a força física é necessária, pois “a força de uma criança de três anos é suficiente” (citado por César Neffa, J., 1990, p. 338).
Com uma estratégia similar acentua-se a divisão social e técnica do trabalho; só umas poucas pessoas, muito especializadas, chegam a compre­ender claramente todos os passos da produção de qualquer mercadoria, e o que a motiva. Por meio de uma sofisticação cada vez maior da tecnologia, por outro lado, as máquinas puderam começar a encarregar-se dos trabalhos mais especializados. Os operários e operárias geralmente tinham que aten­der apenas às atividades menos complexas, mais rotineiras e monótonas. O filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin, resume claramente as intenções de tal estratégia política e organizativa, especialmente nas cenas que descre­vem o comportamento do protagonista ante a linha de montagem. Nesse processo de produção, a pessoa que se encontra diante da máquina tem de obedecê-la. O ser humano perde progressivamente sua autonomia e inde­pendência para submeter-se às vontades da máquina.
O fordismo traduz uma filosofia onde o menos importante são as necessidades e interesses das pessoas. Um exemplo de que só a rentabili­dade econômica vale a pena, mesmo com relação às vidas humanas; é proporcionado pela fabricação dos carros modelo “Pinto”, da Ford. Este modelo tinha um grande defeito: seu depósito de gasolina explodia se ele sofresse urna colisão na parte traseira. A Ford chegou a calcular o número provável de mortos que o defeito provocaria, mas a onze dólares cada depósito, não seria rentável corrigir a falha (Bowles, S.; Gordon, D.M. e Weisskopf, Th.E., 1992, p. 42).
As conseqüências desta desapropriação de conhecimentos e destrezas dos trabalhadores por máquinas e robôs representam um atentado contra os seus direitos à participação dos processos de tomada de decisões, impe­dindo a democratização dos processos de produção; ao mesmo tempo, a imensa maioria das vagas de trabalho pode ser ocupada facilmente por qualquer pessoa, sem necessidade de uma formação especializada. A orga­nização científica do trabalho possibilita a decomposição dos postos de trabalho em tarefas e estas em gestos simples que devem ser executados conforme urna cadência pré-definida de antemão por um número muito reduzido de pessoal “especializado”. Deste modo, acentua-se uma filosofia defensora dos interesses do capital baseada no incremento dos processos de desqualificação.
Tarefas que no passado precisavam de certa qualificação profissional dividiram-se e subdividiram-se em várias tarefas simples que qualquer pes­soa sem formação pode desempenhar e, conseqüentemente, dentro da lógica capitalista da oferta e da procura, com o direito de receber salários mais baixos. Um exemplo dos efeitos desta nova organização do trabalho é proporcionado pela fábrica Ford. Esta empresa, doze anos depois de ter introduzido a linha de montagem, informou que 43% dos seus 7.782 dife­rentes postos de trabalho exigiam apenas um dia de aprendizagem; 36%, um período compreendido entre um dia e uma semana; 6%, de uma a duas semanas; e só 15% requeriam um período de aprendizagem mais longo. Em suma, 85% dos trabalhadores da fábrica Ford conseguiam obter a apti­dão necessária para o trabalho em menos de duas semanas (citado por César Neffa, J., 1990, p. 141).
Assim, as filosofias taylorista e fordista conseguiram reforçar os siste­mas piramidais e hierárquicos de autoridade, nos quais os máximos poder e prestígio encontram-se no ápice e, à medida que descemos, aparece um maior contingente de pessoas sem possibilidade de iniciativa e de apresen­tar propostas. Estas estratégias destinam-se também a privar a classe traba­lhadora de sua capacidade de decisão sobre o próprio processo de traba­lho, sobre o produto, as condições e o ambiente de trabalho.
No entanto, essas políticas de controle e degradação do trabalho hu­mano tiveram de enfrentar fortes obstáculos colocados pelas associações e sindicatos de operários. Existe documentação sobre numerosas greves, manifestações e atos de sabotagem na maquinaria das fábricas. Esta taylorização do trabalho é contestada pelas classes operarias e suas organizações, bem como por intelectuais democratas, nos países nos quais tentou-se implantá-la. Um exemplo disso foi a importante obra do francês Émile Pouget, L‘Organisation du surmenage. Le systême Taylor (“A organi­zação do estresse. O sistema Taylor”), publicada em 1914, em função da greve de operários das fábricas Renault na França que protestavam contra o sistema taylorista que estava começando a ser aplicado. O próprio F. Taylor, nos Estados Unidos, chegou a confessar que em diversos momen­tos da sua vida “fora obrigado a seguir um trajeto diferente todos os dias para escapar da vigilância dos operários que queriam surpreendê-lo em algum canto isolado da cidade” (Coriat, B., 1993, p. 36).
Esta depreciação dos conhecimentos necessários para fazer funcionar uma máquina faz com que qualquer operário ou operária possa ser facil­mente demitido, quando se tornar “incômodo” para os donos dos meios de produção. A substituição não causa nenhuma dúvida, pois muitas ou­tras pessoas podem realizar esse mesmo trabalho. Conseqüentemente, a divisão do trabalho dentro de modelos econômicos capitalistas facilita o controle e a dominação de trabalhadores e trabalhadoras.
Trata-se de uma linha de inovação tecnológica, organizativa e discipli­nar que implica em uma política de modificação qualitativa dos processos de produção, para fortalecer os sistemas de controle direto dos trabalhado­res. A fragmentação das atividades de produção transformou-as em incom­preensíveis; passou-se a oferecer apenas um salário à classe trabalhadora como motivação para desenvolver seu trabalho; foi-lhe negada a responsa­bilidade de intervir em questões tão importantes e humanas como o que deve ser produzido, por quê, para quê, como, quando, etc.

A FRAGMENTAÇÃO DA CULTURA ESCOLAR

Este processo de desqualificação e atomização de tarefas ocorrido no âmbito da produção e da distribuição também foi reproduzido no interior dos sistemas educacionais.
Tanto trabalhadores como estudantes verão negadas suas possibilida­des de poder intervir nos processos produtivos e educacionais dos quais participam. A taylorização no âmbito educacional faz com que nem profes­sores nem alunos possam participar dos processos de reflexão crítica sobre a realidade. A educação institucionalizada parece ter se reduzido exclusi­vamente a tarefas de custódia das gerações mais jovens. As análises dos currículos ocultos evidenciam que o que realmente se aprende nas salas de aula são habilidades relacionadas com a obediência e a submisão à autori­dade (Jackson, P.W., 1991; Torres, J., 1991).
Este processo de “despersonalização” e de preparação da juventude para incorporar-se e assumir as regras do jogo de um modelo de socieda­de, de produção e relações de trabalho no qual sé pretende que a maioria das pessoas não possa intervir e decidir, é contestado não só pelos movi­mentos sindicais e partidos políticos progressistas, mas também pela pró­pria classe docente e estudantil.
As políticas e práticas educacionais daquele momento histórico tam­bém eram denunciadas, porque seus resultados práticos contribuíam para impedir a reflexão crítica sobre a realidade e a participação na vida comu­nitária. Os conteúdos culturais com os quais meninos e meninas entravam em contato durante sua permanência nas instituições escolares eram de­masiado abstratos, desconexos e, portanto, incompreensíveis. Desde o iní­cio deste século, John Dewey, um dos fundadores da Escola Ativa, critica as instituições de ensino que obrigam os alunos a trabalharem com uma excessiva compartimentação da cultura em matérias, temas, lições e com grande abundância de detalhes simples e pontuais. O resultado é que, como estratégia para sobreviver nas salas de aula, meninos e meninas passam a acumular em suas mentes uma “sobrecarga de fragmentos sem conexão uns com os outros, que só são aceitos baseados na repetição ou na autoridade” (Dewey, J., 1989, p. 159).
Os conteúdos culturais que formavam o currículo escolar com exces­siva freqüência eram descontextualizados, distantes do mundo experiencial de alunos e alunas. As disciplinas escolares eram trabalhadas de forma isolada e, assim, não se propiciava a construção e a compreensão de nexos que permitissem sua estruturação com base na realidade.
Desta maneira, a instituição escolar traía sua autentica razão de ser: preparar cidadãos e cidadãs para compreender, julgar e intervir em sua comunidade, de uma forma responsável, justa, solidária e democrática. Na medida em que também aqui tornava-se realidade a fragmentação dos conteúdos culturais e das tarefas, os estudantes se deparavam com obstá­culos bastante intransponíveis para compreender o autêntico significado dos processos de ensino e aprendizagem. Assim, nas instituições de ensino produzia-se uma distorção semelhante à do mundo produtivo. Só poucas pessoas - que elaboravam as diretrizes escolares e os livros-texto tinham uma idéia clara daquilo que pretendiam; o resto, inclusive os professores e naturalmente os alunos e alunas, chegavam a alterar, a finalidade da escolarização e da educação.
Na medida em que os conteúdos culturais manejados nas salas de aula, fundamentalmente mediante livros-texto, não passavam de enuncia­dos mais ou menos abstratos (“pílulas” que deviam ser memorizadas, po­rém sem possibilidade de reflexão nem de comparação), os objetivos au­teriticos (a aprendizagem que se promovia na prática cotidiana) passa­vam a ressaltar acima de tudo a capacidade de obediência e submissão dos alunos.
Os professores e professoras ocupavam-se mais de serem obedecidos, de seguir um determinado ritmo nas tarefas a realizar, de propiciar uma memorização de dados quase nunca bem compreendidos; enquanto isso, os alunos geravam estratégias para recordar dados e conceitos que para eles não tinham qualquer significação; portanto, preocupavam-se mais com manter as aparências: apresentar exercícios caprichados, acabar a tempo, não falar sem permissão, manter a ordem nas filas etc. O menos importante eram os processos de reconstrução cultural que deviam ocorrer nas salas de aula. Na verdade, o que realmente importava eram as notas escolares, que representavam a mesma coisa que os salários para os operários e operárias. O produto e o processo de trabalho não valiam a pena, só era importante o resultado extrínseco, o salário ou as qualificações escolares.

AS NOVAS NECESSIDADES DAS ECONOMIAS DE PRODUÇÃO FLEXÍVEL

Uma das características idiossincráticas das economias dos países desenvolvidos desde a década de 80 é o acelerado processo de intercomunicação e interdependência das suas economias.
Este processo de globalização das economias e, portanto, de transfor­mação das regras de competitividade obriga a revisar e modificar os pro­cessos de produção e comercialização. Os modelos taylorista e fordista começam a apresentar sinais de esgotamento quando deixam de acomo­dar-se facilmente aos novos mercados. Atualmente, segundo as organizações empresariais, se se quiser aumentar a competitividade das empresas é imprescindível atingir uma maior eficiência produtiva, e para isso necessi­ta-se uma série de requisitos: aumento da produtividade, redução dos cus­tos trabalhistas e de capital, melhora da qualidade e flexibilização da pro­dução; conseqüentemente, é preciso recorrer a outras formas de gestão e organização do trabalho.
Durante as décadas passadas, o fordismo demonstrava seu êxito com a introdução da produção em massa e em série, apoiada nas linhas de montagem para eliminar tempos ociosos da força de trabalho e nas diver­sas operações de transformação das matérias-primas. O fordismo introduziu uma série de mudanças importantes nas filosofias de produção de sua época. Entre outras, a modificação das normas de consumo. Para produzir mais era preciso aumentar simultaneamente o consumo, o que obrigou a elevar os salários de trabalhadores e trabalhadoras, que também tinham que se converter em consumidores. Mas na década de 70, ante a progressiva globalização das economias, desencadeou-se a crise deste modelo produtivo. Agora a crise econômica manifesta-se através do fato de que os mercados são cada vez mais heterogêneos e estão mais fragmentados, pro­vocando a desconcentração e a descentralização da produção.
A descentralização é a única forma viável de poder atender às necessidades e interesses de caráter mais local; desta forma é possível detectar melhor as necessidades de seus consumidores. 
A “estabilidade em um posto específico de trabalho” é substituída a partir de agora pela “estabilidade no emprego dentro da empresa”, no       melhor dos casos. Além disso, evidencia-se a precariedade nos contratos de trabalho na medida em que surgem situações de instabilidade,           temporalidade, instacionalidade, insegurança das contratações, o que será chamado de flexibilidade trabalhista.
No mundo empresarial, entre as medidas propostas encontram-se as de oferecer maior participação à classe trabalhadora na concepção, progra­mação e avaliação dos resultados de suas próprias tarefas. Isto obrigará os empresários a impulsionar e sustentar programas de formação permanente e de reciclagem trabalhista. Cada vez mais, a situação diferencia-se das normas construídas pelas concepções tayloristas, pois nelas ressaltava-se a formação profissional centrada na especialização, já que as tarefas estavam claramente delimitadas e divididas. Mas isto deixou de combinar com a flexibilidade da produção e dos mercados atuais.
Começa-se a conceder importância ao trabalho em equipe, frente ao trabalho individual dos modelos tayloristas e fordistas. Recordemos que antes propunha-se o trabalho individualizado, porque F.W. Taylor estavaconvencido de que trabalhadores e trabalhadoras eram vagabundos, e que, se tivessem a possibilidade de agrupar-se, ficariam ainda mais tempo sem fazer nada, diminuiriam o ritmo.
Para o mundo empresarial, os anos 80 significam uma forte aposta nas ideologias e culturas eficientistas, privatizadoras, individualistas, liberais e conservadoras que, de forma prioritária, outorgam ao mercado a responsabilidade de destinar eficazmente os recursos e determinar os preços. Ao mesmo tempo, a competição das indústrias e mercados de outros países torna-se muito evidente, bem como as exigências de uma população já convertida em consumidora voraz.
Taichi Ohno, engenheiro-chefe da empresa Toyota, revolucionou os atuais modelos de gestão e produção; ele foi o inspirador da famosa revo­lução Toyota durante a década de 50 e 60, e por esta razão este modelo é conhecido pelos nomes de “toyotismo” ou “~hnonismo”.
Esta nova concepção da organização do trabalho dintingue-se pelos seguintes fatores:
1.     Eliminação dos recursos redundantes, considerados um desperdí­cio, e implantação da “produção enxuta”. A fábrica enxuta ou “mínima” se reduz “às funções, equipamentos e pessoal estritamente necessários para satisfazer à demanda diária ou semanal” (Coriat, B., 1993, p. 23); conse­qüentemente, precisa de menos espaço, menos materiais acumulados, menos pessoal, menos maquinaria, menos estoques. Para tornar possíveis tais re­duções, deve-se desenvolver uma estratégia para que as provisões e maté­rias necessárias para a fabricação ou comercialização de algo possam estar disponíveis com a maior rapidez possível, “just-in-tíme”.
2. O objetivo da “Qualidade Total”, ou defeito-zero, refere-se ao pro­cesso de detectar o quanto antes os defeitos de produção e comercialização, eliminando-os desde o início, sem recorrer ao aumento de custos. Para isso são utilizadas várias estratégias, entre elas: o controle estatístico do proces­so e, especialmente, os grupos ou círculos de qualidade.
Os “círculos de qualidade” são uma importante inovação organizativa que ajuda a recuperar e aproveitar o conhecimento e experiência dos tra­balhadores, e que se propagou rapidamente das fábricas japonesas da Toyota para empresas de outros países. A memória histórica do empresariado per­cebeu que, quando uma nova máquina ou tecnologia é incorporada a uma fábrica, sempre existem muitas probabilidades de aparecerem imprevistos em seu funcionamento e utilização, não detectados nos testes. Aqueles que detectavam alguma anomalia em primeiro lugar, imaginavam modos de solucioná-la, eram os que a manejavam diretamente; daí a necessidade de contar com sua colaboração para superar os imprevistos o quanto antes para, deste modo, não diminuir a produção. Os círculos de qualidade são uma modalidade de organização do trabalho na qual trabalhadores e traba­lhadoras comprometem-se com os interesses da empresa e colaboram de maneira mais intensa, colocando à disposição da mesma sua experiência e conhecimentos para identificar problemas, sugerir e experimentar mudan­ças que favoreçam uma maior produção e melhora da qualidade.
Para chegar a este compromisso, estimula-se sua competitividade mediante prêmios e incentivos econômicos, fazendo com que trabalhado­res e trabalhadoras se comprometam com os objetivos de qualidade e pro­dutividade propostos pela empresa, etc.
3. Envolver a classe trabalhadora na tomada de decisões relativas à produção significa oferecer-lhe formação contínua, pois as flutuações do mercado são muito grandes. A polivalência e plurifuncionalidade de assalariados e assalariadas são condições básicas para facilitar as inovações na organização das empresas e assegurar sua produtividade e rentabilidade.
Segundo o próprio Taichi Ohno, “o sistema Toyota originou-se na necessidade particular do Japão de produzir pequenas quantidades de muitos modelos de produtos; mais tarde, o mesmo evoluiu para converter-se em um verdadeiro sistema de produção. Devido a esta origem, este sistema é fundamentalmente competitivo na diversificação” (citado em Coriat, B., 1993, p. 20). Isso representava o contrário das propostas de Henry Ford, que buscavam a fabricação em massa, isto é, uma grande quantidade de produtos idênticos. Como pretende ajustar-se às flutuações qualitativas e quantitativas do mercado e da demanda, o ohnonismo não se arrisca acu­mulando grandes estoques que possam ficar encalhados. Assim, seu objetivo é a fábrica mínima ou “enxuta”, que lhe servirá para reduzir custos, ganhar competitividade e, o que é muito importante, poder. É preciso pro­duzir apenas o necessário e no momento certo.
Neste novo modelo de organização do trabalho, as telecomunicações desempenham um papel muito importante. Com o desenvolvimento e propagação das tecnologias da informação, o mundo empresarial e, em geral, as instituições têm maiores possibilidades de realizar processos descentralizadores e aumentar a flexibilidade dos modelos organizativos, sem chegar a perder o controle e a direção.
A informatização permite reduzir, o excesso de burocracia vertical da maioria das fábricas e, em geral, de qualquer tipo de instituições, propi­ciando uma maior horizontalidade e, ao mesmo tempo, o aproveitamento do saber e da experiência de trabalhadores e trabalhadoras.
Quando a complexidade e a incerteza são características pecualiares da sociedade na qual vivemos, a flexibilidade transforma-se em dimensão essencial dos modelos de produção e comercialização, contando com o apoio conjunto de potentes redes de telecomunicações, maquinaria programável e controlável por computador, bem como rodovias e meios de comunicação muito velozes.
A flexibilidade e polivalência da classe trabalhadora possibilita que uma mesma pessoa seja responsável pelo manejo e controle de várias má­quinas, ao contrário do. modelo fordista no qual devia atender apenas a uma tarefa. Agora trabalhadores e trabalhadoras gozam de grande autono­mia, tanto para a criação de equipes de trabalho como para assumir diver­sas funções, que vão de tarefas de inspeção e manutenção até a limpeza. A flexibilidade também afeta salários e horários de trabalho. No tocante aos salários, incentiva-se a produtividade e a formação contínua de emprega­dos e empregadas, bem como o tempo de serviço na empresa (para não desperdiçar a experiência prática e os conhecimentos acumulados por cada pessoa), mediante incentivos econômicos.
Na filosofia toyotista existe uma organização e reorganização do tra­balho de acordo com os princípios de flexibilidade horizontal e vertical e de multifuncionalidade. Pode-se afirmar que existe uma importante redescoberta do interesse da pessoa trabalhadora como elemento-chave da rentabilidade e competitividade da empresa; existe o convencimento de que, sem sua cooperação e compromisso, é impossível aumentar a produ­tividade e melhorar a qualidade.
De todos modos, o toyotismo possui um perigo inerente: o de redu­zir-se a uma espécie de taylorismo interiorizado, embora não estejam pre­vistas tarefas corriqueiras e excessivamente rotineiras, nem um forte e visí­vel controle burocrático e disciplinar no ápice de um modelo organizativo piramidal. Mas para melhorar a produção pode-se recorrer a estratégias como eliminar movimentos inúteis e padronizar e simplificar bastante os processos, tratando de evitar tarefas complicadas para não perder tempo.
Como declara Giuseppe Bonazzi (1993, p. 13), “é difícil discernir a sutil linha que separa, por um lado, a participação voluntária e, pelo outro, a interiorização obsessiva da auto-exploração”.
Não devemos esquecer o forte ataque e destruição dos sindicatos independentes na década de 50, efetuados pelas empresas japonesas que implantavam este modelo de organização do trabalho e da produção. O patronato japonês dedicou-se a criar sindicatos colaboracionistas e chegou a recorrer à polícia para impor sua ordem. Naquele momento surgiu a figura do sindicato de fábrica, corporativista, totalmente identificado com os interesses da mesma. As greves deixam de existir, pois os sindicatos são controlados pela empresa, já que ocupar cargos em tais sindicatos é uma das maneiras de obter melhores postos de trabalho e ganhar melhores salários. Ao mesmo tempo, há uma maciça redução de pessoal, que se agrupa em pequenas células de produção com uma filosofia muito compe­titiva, o que dificulta ainda mais as reivindicações coletivas.
Outra característica importante dos modelos toyotistas é a ocultação das hierarquias de poder, mas estas são reais; no fundo, o que se discute são os meios e formas de obter determinados produtos, mas os verdadei­ros objetivos empresariais ficam à margem da classe trabalhadora: o que se produz, a quantidade, o porquê, quando e onde. Nos modelos empresari­ais descentralizados, a delegação de poder ocorre apenas até determina­dos limites e, ao mesmo tempo, os controles tornam-se mais difusos e ocultos.
Apesar disso, acho importante esclarecer que não estou afirmando que o fordismo desapareceu; ao contrário, continua desenvolvendo-se e reformulando-se, e é possível ver este modelo de organização do trabalho junto a outros de inspiração ohnonista, com maior preocupação por mode­los de produção flexíveis, em uma mesma empresa, especialmente se esta tiver filiais em países diferentes (Carrillo, J., 1994).

ALGUMAS
 INFLUÊNCIAS DOS MODELOS EMPRESARIAIS NOS
SISTEMAS EDUCACIONAIS

Na década de 60, eram freqüentes as metáforas e comparações da escola com as fábricas, sobretudo entre aqueles que apoiavam modelos positivistas e tecnológicos de organização e administração escolar. A lin­guagem, conceitos e práticas normalmente utilizados na indústria, como “direção por objetivos”, “management científico”, “taxionomias de objeti­vos operacionais”, etc., passam a ser habituais nos tratados de pedagogia e nos programas das Escolas de Magistério e Faculdades de Ciências da Edu­cação. Esta nova linguagem incorpora os valores e pressuposições do mundo empresarial do capitalismo.
Cada vez mais, as instituições escolares passam a ser vistas da mesma maneira que as empresas e mercados econômicos. As análises e instrumen­tos analíticos para compreender as dinâmicas emprésariais e mercantis vão adquirindo maior relevância na hora de julgar os sistemas educacionais.
Se durante todo este século pudemos constatar que os sistemas educacionais não permaneceram indiferentes ante as mudanças nos modos de produção e gestão empresariais (Apple, M.W., 1986; Gimeno, J., 1982; Tor­res, J., 1991), é lógico pensar que as soluções propugnadas pelo toyotismo também tenham deixado sua marca no sistema educacional.
Para compreender as reformas e inovações educacionais é preciso desvelar as razões e discursos nos quais se baseiam. Tanto as políticas de reforma educacional oriundas da Administração como as modas pedagógi­cas estão impregnadas de discursos, ideais e interesses gerados e compar­tilhados por outras esferas da vida econômica e social.
Se as crises nos modelos de produção e distribuição capitalista vão sendo resolvidas gradualmente, em um primeiro momento mediante a apli­cação de princípios tayloristas e fordistas, e posteriormente com novas aclaptaçõcs e mesmo, atualmente, com a gestação de novas fórmulas como o toyotismo, é previsível pensar que algo semelhante pode estar ocorrendo também nos sistemas escolares. Cada modelo de produção e distribuição requer pessoas com determinadas capacidades, conhecimentos, habilida­des e valores; e sobre isto os. sistemas educacionais têm muito a dizer.
Os novos modelos de produção industrial, sua dependência das mu­danças de ritmo nas modas e necessidades preferidas pelos consumidores e consumidoras, as estratégias de competitividade e de melhora da quali­dade nas empresas, exigem das instituições escolares compromissos para formar pessoas com conhecimentos, destrezas, procedimentos e valores de acordo com esta nova filosofia econômica.
Durante a década de 80, as fortes críticas do mundo empresarial às instituições escolares e especialmente à Formação Profissional converte­ram-se em algo cotidiano. Deste modo, o governos socialista foi obrigado a realizar uma reforma do sistema educacional espanhol para poder preparar futuros trabalhadores e trabalhadoras para ajustar-se às novas filosofias da produção e às conseqüentes transformações dos postos de trabalho.
Conseqüentemente, a grande importância que os discursos oficiais dos Ministérios e Secretarias da Educação vêm outorgando a algumas lin­guagens pedagógicas pode ser relida e interpretada também a partir de uma certa filosofia próxima ao ohnonismo.
Penso que numerosas propostas pedagógicas que estão sendo divulgadas por instâncias ministeriais pertencentes ao próprio Governo, que atualmente também está contribuindo com a flexibilização dos merca­dos de trabalho, adquirem sentido se levarmos em consideração esta interdependência entre a esfera econômica e a educacional. Conceitos e propostas como as de “descentralização”, “autonomia dos centros escolares”, “flexibilidade dos programas escolares”, “liberdade de escolha de ins­tituições docentes”, etc., têm sua correspondência na descentralização das grandes corporações industriais, na autonomia relativa de cada fábrica, na flexibilidade de organização para ajustar-se à variabilidade de mercados e consumidores, nas estratégias de melhora de produtividade baseada nos círculos de qualidade, na avaliação e supervisão central para controlar a validade e o cumprimento dos grandes objetivos da empresa, etc.
A flexibilidade organizativa promovida para organizações e progra­mas escolares pode ser uma conseqüência da defendida no mundo empre­sarial; da flexibilidade exigida para que as empresas possam adaptar-se rapidamente às necessidades detectadas nos mercados.
Da mesma maneira que na filosofia toyotista existe uma notável exaltação da figura do trabalhador, também na educação os discursos são               unânimes sobre a importância decisiva da classe docente. Assume-se que,   sem sua cooperação, nenhuma inovação pode ser bem-sucedida. As tenta­tivas mais fordistas de confiar na tecnologia para “suprir” déficit de forma­ção ou falta de cooperação são agora consideradas ineficazes.
Segundo afirma a própria Administração, a qualidade dos processos educacionais é impossível sem o compromisso dos professores. Mas, no fundo, talvez pretenda-se apenas circunscrever o âmbito do que pode ser pensado por professores, professoras, e estudantes às dimensões    metodológicas e de organização das instituições escolares, mas não à aná­lise crítica dos conteúdos e finalidades dos níveis educacionais e, em geral, do sistema escolar.
A liberdade de mercados do mundo econômico está sendo transferida também para o âmbito da educação. Aqueles que apostam em modelos capitalistas como os que comentamos exigem e defendem que a Liberdade dos consumidores também se reflita na liberdade de escolher CEPs e corpo docente. Isto explica o forte impulso que os países com governos mais conservadores estão dando à elaboração de “padrões de qualidade” para analisar o sistema educacional, como se estivéssemos falando de fábricas e mercados.
Como frisam Stephen Murgatroyd e Colin Morgan (1993, p. 44), do mesmo modo que a revolução industrial criou novas modalidades de traba­lho nas manufaturas do século passado, a revolução da qualidade está origi­nando novas formas de trabalho em todas as organizações dos anos 90.
Pretende-se garantir esta aposta na qualidade programando um con­junto de padrões ou exigências de qualidade propostas por grupos de pessoas especializadas em Administração Educacional.
No entanto, devemos ressaltar que esta introdução da flexibilidade curricular, autonomia das instituições escolares, necessidade de maior for­mação e atualização dos professores etc., faz parte das velhas reclamações dos grupos docentes e sindicais mais progressistas. Desde o início, os MRPs ­vêm propugnando estas medidas. Com o reconhecimento destas reivindicações pelas políticas da Administração, pelo menos em numerosos discursos teóricos, abrem-se possibilidades reais de intervir em um espaço prático que podem ser aproveitadas pelo corpo docente, estudantes e grupos sociais comprometidos com a educação, assim como pela sociedade em geral, para melhorar a qualidade do sistema educacional. Podem ser criadas dinâmicas de participação que levem à democratização real de suas estruturas, à revisão crítica dos conteúdos, valores e habilidades construídos e reconstruídos por estudantes e professores nas salas de aula e instituições educacionais.
Resta saber se esta nova linguagem é real, fruto de uma verdadeira confiança na participação democrática, ou se é apenas uma mudança de linguagem, até convertê-la em um simples conjunto de slogans sem qualquer conteúdo.
Conceitos como ensino globalizado, interdisciplinariedade, participação, democracia, trabalho em equipe, abrangência, autonomia, etc., podem acabar perdendo sua riqueza original e reduzir-se a frases feitas. Deste modo estaria sendo traído o compromisso de numerosos grupos docentes MRPs, sindicatos, etc., com a defesa da filosofia de fundo de tais conceitos.
Assim, alguns exemplos que reafirmam este tipo de dúvidas são: a falta de um compromisso sério com as reformas educacionais na medida em que ao mesmo tempo não se aprova uma lei de financiamento que possa garantir minimamente seu desenvolvimento; a criação de um Instituto Nacional de
Qualidade e Avaliação do Sistema Educacional pelo Ministério da Educação e Ciência que pode reforçar uma maior centralização frente adiscursos oficiais de descentralização, especialmente se começarem a ser elaborados indicadores para julgar o grau de cumprimento do PCB. Deste modo, a filosofia de responsabilidade, democratização e autonomia dos CEPs limitar-se-ia apenas a questões de menor importância pois no fim haveria que competir no mercado estatal, comparando os resultados conseguidos por cada centro com a lista de indicadores elaborada pela equipe de pessoas designadas pelo Ministério da Educação e Ciência. O discurso da autonomia pode reduzir-se apenas à liberdade de escolha de estratégias para obter os objetivos impostos pelas estruturas centrais do sistema educacional. Os “círculos de qualidade” constituídos pelas equipes pedagógicas de cada centro escolar teriam sua capacidade de ação delimitada por indicadores daquilo que devem conseguir, para cuja definição não contribuíram.
Não podemos esquecer que qualquer sistema de indicadores é fruto de uma determinada ideologia; traduz os resultados que cabe esperar das instituições escolares a partir de uma concepção de valores específica. Além disso, na medida em que se pretende impor em todo o Estado espanhol uma realidade plurinacional, pluricultural e plurilingüística, existe o perigo de estar reforçando, mesmo sem se ter esta intenção, uma uniformização que contradiz a realidade desta diversidade de povos e culturas.
Poucas vezes ao longo da história foi tão urgente posta em uma educação verdadeiramente comprometida com valores de democracia, so­lidariedade e crítica, se quisermos ajudar cidadãos e cidadãs a enfrentar essas políticas de flexibilidade, descentralização e autonomia propugnadas nas esferas trabalhistas. É preciso formar pessoas com capacidade de críti­ca e solidariedade, se não quisermos deixá-las ainda mais indefesas.
Enquanto isso, professoras, professores, estudantes e grupos sociais convencidos do valor da educação, apesar de todo tipo de obstáculos, continuarão abrindo novas brechas, desenvolvendo práticas educacionais mais democráticas, nas quais garotos e garotas pertencentes a grupos so­ciais não-hegemônicos não serão discriminados.



GLOBALIZAÇÃO E
INTERDISCIPLINARIDADE
Jurjo Torres Santomé

Todo projeto curricular pode organizar-se de diversas formas, e não somente por disciplinas, como tem ocorrido. De qualquer modo, sempre será necessária uma reflexão prévia sobre as razões e as conseqüências das soluções pelas quais se optou. Globalização e interdisciplinaridade propõe-se a servir de ajuda nessa escolha. O autor analisa a base ideológica, filosófica, científica e profissional que permeia o discurso e as práticas de organização das tarefas escolares baseadas em disciplinas e estuda as alternativas que podem ser oferecidas a esse modelo dominante, apresentando conceitos como a globalização, a interdisciplinaridade, os temas transversais, a educação mundial, os projetos, os centros de interesse, etc. Jurjo Torres reacende um debate sobre todas essas questões num momento em que também existe o perigo de que a globalização, a interdisciplinaridade e o currículo integrado, como estratégia organizadora e metodológica, sejam reduzidos a um simples slogan ou a conceitos sem
          conteúdo.                             

Levando em consideração o trabalho prático e reflexivo de professores em sala de aula, este livro oferece numerosas sugestões práticas para facilitar a elaboração de propostas de trabalho de caráter integrado e de unidades didáticas, sendo útil tanto para professores de educação infantil como de ensino médio, bem como a toda pessoa interessada em oferecer alternativas para a melhor qualidade do sistema educacional.


Editora ETVED
















PSICOLOGIA E CURRÍCULO


Uma aproximação psicopedagógica à elaboração do currículo escolar

Editora Ática

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OS FUNDAMENTOS


DO CURRÍCULO

Os problemas relacionados com o currículo não são, é claro, os únicos a resolver quando se faz uma reforma educacional; esta também deve contemplar muitos outros fatores igualmente determinantes, em maior ou menor medida, do grau de sucesso ou fracasso do empreendimento. A importân­cia crucial das questões curriculares, no entanto — não só na etapa de planejamento mas também na fase de execução -, converte-as em um dos pilares fundamentais de qualquer reforma educacional. De fato, no currículo, concretiza-se e toma corpo uma série de princípios de índoles diversas — ideo­lógicos, pedagógicos, psicopedagógicos que, em conjunto, mostram a orientação geral do sistema educacional. Entre ou­tras coisas, a elaboração de um projeto curricular pressupõe a tradução de tais princípios em normas de ação, em prescrições educativas, para elaborar um instrumento, útil e eficaz na prática pedagógica. O currículo é um elo entre a declaração de princípios gerais e sua tradução operacional, entre a teoria edu­cacional e a prática pedagógica, entre o planejamento e a ação, entre o que é prescrito e o que realmente sucede nas salas de aula. É lógico, portanto, que a elaboração do currículo ocupe lugar central nos planos de reforma educacional e que freqüentemente ele seja considerado como ponto de referência para guiar outras atuações (por exemplo, formação inicial e permanente do corpo docente, organização dos centros de ensino, confecção de materiais didáticos etc.) e assegurar, em última instância, a coerência das mesmas.
Nas páginas seguintes, exporemos os fundamentos e as opções básicas subjacentes ao modelo de currículo proposto. Na medida em que o currículo traduz e concretiza a orientação geral do sistema educacional, o primeiro ponto explicita e justifica brevemente o conceito de educação, bem como suas relações e vinculações com outros conceitos próximos, sobre-tudo os de desenvolvimento, cultura e escolarização. Para situar o currículo no contexto da escolarização, é necessário pre­cisar o que se entende por currícttio, determinar suas funções e identificar seus elementos principais, pois o significado e a extensão do termo variam muito conforme os autores orientações teóricas; esse é o objetivo do segundo ponto. No ter­ceiro, são consideradas as fontes do currículo, isto é, o tipo de informação que se deve considerar na sua elaboração. Em grande parte, essas informações são específicas para cada cur­rículo, pois variam em função tio lugar e do momento (as informações originadas na sociologia da educação, por exemplo) ou do nível educacional e da idade dos alunos (como as informações originadas na natureza e estrutura do conteúdo                                              da aprendizagem). Existe, entretanto, um conjunto de informações, provenientes da análise psicológica dos processos de desenvolvimento e aprendizagem, uqe são relativamente gerais e, pois, merecem um tratamento específico numa proposta de modelo curricular que abranja todo o ensino obrigatório; por isso, no quarto ponto, são analisadas separadamente as con­tribuições da psicologia ao currículo. No quinto e último pon­tos, a exposição dos fundamentos da proposta é encerrada com argumentos a favor de um modelo de currículo aberto e flexível, cujos vários níveis de concretização possibilitem potencializar ao máximo sua utilização e eficácia.

DESENVOLVIMENTO, CULTURA, EDUCAÇÃO E ESCOLARIZAÇÃO

Provavelmente não haverá divergências entre os profis­sionais da educação se afirmarmos que sua finalidade primor­dial é promover o crescimento dos seres humanos. Mas com certeza elas surgirão no momento de definir e explicar em que consiste o crescimento educativo e, sobretudo, de decidir as ações pedagógicas mais adequadas para promovê-lo. A disjun­tiva básica ocorre entre aqueles que o fundamentam como o resultado de um processo de desenvolvimento, em grande parte interno à pessoa, e os que o concebem mais como o resultado de um processo de aprendizagem, em grande parte externo à pessoa.
Na verdade, o crescimento pessoal e social, intrínseco à idéia de educação, pode vincular-se alternadamente tanto ao processo de desenvolvimento como ao de aprendizagem. Por um lado, uma pessoa educada é uma pessoa que se desenvolveu, que evoluiu, no sentido forte do termo, desde níveis inferiores de adaptabilidade ao meio físico e social até níveis superiores. Por outro, como lembra acertadamente Calfee (1981), uma pessoa educada é a que assimilou, que interiorizou, em suma, que aprendeu, o conjunto de conceitos, explicações, habilida­des, praticas e valores que caracterizam uma cultura determinada, sendo capaz de interagir de forma adaptada com o ambiente físico e social no seio da mesma. A opção por uma das duas interpretações do crescimento educacional é importante, porque propõe ações pedagógicas diferentes que se plasrnam no currículo.
Embora antiga, a controvérsia foi incentivada, nas déca­das de 1960 e 1970, pelo auge do enfoque cognitivo-evolutivo inspirado na teoria genética de J. Piaget e por suas aplicações ao campo da educação sugeridas por alguns dos seus partidários. Kohlberg, por exemplo, num trabalho clássico publicado em 1968 sob o título de “Early Education: a cognitive developmental view”, formulava a tese de que os aprendizados específicos promovidos por muitos programas pré-escolares, apesar de parecerem positivos à primeira vista — isto é, apesar de se poder constatar uma aprendizagem efetiva nas crianças provavelmente repercutem escassa ou nulamente sobre seu desenvolvimento a médio ou longo prazos. Segundo Kohlberg, a exposição das crianças pré-escolares a situações não-especificas de aprendizagem, como as que sugere a teoria genética de Piaget (com profusão de conflitos cognitivos, manuseio direto de obje­tos etc.), situações que põem em jogo as operações básicas da inteligência e da competência operacional, são mais apropriadas para induzir ou provocar efeitos positivos a médio) e longo prazo sobre o crescimento educativo.
Nessa interpretação do enfoque cognitivo-evolutivo, o crescimento que a ação pedagógica deve potencializar é visto                mais como o progresso que segue as linhas naturais do desen­volvirnento que o que depende de aprendizagens específicas. De fato, a tese de Kohlberg faz parte de urna tradição de pensamento segundo a qual os esforços para ensinar conteúdos ou habilidades específicas são, até certo ponto, fúteis. O que importa é a competência cognitiva geral e reforçá-la é a única coisa que a educação pode e deve fazer, submetida às leis gerais do desenvolvimento; no caso concreto que estamos tratando, sobre as leis gerais do desenvolvimento operatório.
Os anos 1970 foram pródigos em currículos e progra­ mas para a pré-escola e para o ensino básico (Kamii, 1970; Lawson, 1975; Karplus, 1979; etc.) inspirados no enfoque cognitivo-evolutivo, que parte do principio de que a finali­dade última da educação formal é promover o maior avanço possível dos alunos na seqüência evolutiva das etapas operató­rias (em nível pré-escolar, a operatividade concreta; no ensino básico, a operatividade formal). Chegar a ser educado, como frisa D. Kuhn (1979), equipara-se, assim, a atingir o nível mais elevado numa seqüência de etapas evolutivas.
As teorias estruturais do desenvolvimento (a de Piaget é a mais conhecida, mas algo semelhante ocorre com as de Werner, Kohlberg e outras) postulam direções e níveis universais do desenvolvimento que podem ser adotados com fins educativos, isto é, que podem ser tomados como modelo do que deve ser o crescimento pessoal promovido pela educação formal. Essa colocação encontra-se explicitamente formulada no artigo) programático de Kohlberg e Mayer publicado em 1972 com o significativo título de “Development as the aim of education”. Segundo os autores, a psicologia do desenvolvi­mento constitui o “único” ponto de partida aceitável para for­mular metas educacionais, porque elimina “o incômodo problema da pluralidade de valores; a seqüência de etapas do desenvolvimento permite estabelecer fins educativos “livres de valoração” na medida em que representam uma progressão que ocorre “de maneira natural”. Acrescente-se que esta forma de proceder com freqüência é considerada um antídoto à fun­ção reprodutora e conservadora da educação formal (Delval, 1983), que enfatiza aprendizagens específicas.
Do ponto de vista da alternativa que interpreta o cresci­mento educativo como resultado de aprendizagens específicas, critica-se o enfoque cognitivo-evolutivo e denuncia-se o cará­ter circular de seus argumentos: se as aprendizagens específicas introduzissem modificações nos universais do desenvolvimen­to cognitivo (as estruturas operatórias), estes deixariam de ser universais; o que os define como tais é precisamente sua relativa impermeabilidade à influência de fatores ambientais espe­cíficos. Bereiter (1970), numa réplica à tese de Kohlberg e à colocação cognitivo-evolutiva em geral, acusa-o de cometer um erro “de categoria”, que consiste em identificar o crescimento educativo com as mudanças das pessoas relacionadas ao desenvolvimento dos universais cognitivos e, portanto, pouco influenciáveis pela ação educacional direta.
O enfoque de Kohlberg, argumenta Bereiter, identifica crescimento educacional com mudanças naturais: segundo a teoria genética, é inexorável -  desde que não ocorram transtornos graves ou fortes carências de estimulação ambiental  - que os seres humanos progridam da etapa sensorial-motor para a das operações concretas e desta para a etapa das operações formais. Assim, se estivermos interessados, por exemplo, em promover a educação pré-escolar, será absurdo propor a meta de que as crianças atinjam a etapa das operações concre­tas, pois elas a atingirão de qualquer forma, sem necessidade de ajudas específicas, já que se trata de um dos universais do desenvolvimento cognitivo. Se quisermos melhorar a capaci­dade intelectual dos pré-escolares e, em geral, promover seu crescimento educativo, devemos canalizar mais os esforços pa­ra a aprendizagens que possam ocorrer ou não em função de sua participação em determinados tipos de experiências. O Cresci­mento educativo refere-se, em primeiro lugar, às mudanças das pessoas manifestamente suscetíveis de ser provocadas ou facilitadas mediante uma ação pedagógica direta.
O argumento tem adquirido força nos últimos anos, entre partidários da tradição da teoria genética. Assim, por exemplo, Eleanor Duckworth, discípula de Piaget, que participou da elaboração de um interessante programa de ensino de ciências - o African Primary Science Program - retomou a polêmica em sugestivo trabalho intitulado “Ou lhes ensinamos cedo demais e não podem aprendê-lo ou demasia­do tarde e já sabem: o dilema de aplicar Piaget” (Duckworth, 1979). A tese da autora é que configura um falso dilema. Afirma que o problema reside no fato de que se comete um erro com relação ao quid da educação; às vezes, e buscando a justi­ficativa na teoria de Piaget, afirma-se que a educação deve consistir apenas em promover a aquisição de estruturas cognitivas. Segundo a teoria de Piaget, contudo, essas mudanças se­riam as únicas com as quais a educação não teria de preocu­par-se, pois, deixando as crianças seguirem seu próprio ritmo e garantindo-lhes uma quantidade suficiente de experiências não-específicas, essas aquisições se produzem com a mesma naturalidade com que se aprende a caminhar ou falar. Para Duckworth, o quid da educação não está no favorecimento do desenvolvimento natural, mas na promoção do maior número possível de conhecimentos - tanto em amplitude como em profundidade -, levando em consideração as potencialidades intelectuais do aluno, pois não adquirirá estes conhecimentos sem uma ação pedagógica direta.
Em resumo, a controvérsia na interpretação do cresci­mento educativo é colocada nos seguintes termos: enquanto o enfoque cognitivo-evolutivo considera que a meta primordial da educação deve ser promover, facilitar ou, no máximo, ace­lerar os processos naturais e universais do desenvolvimento, o enfoque alternativo considera que a educação deve ser orien­tada mais à promoção e facilitação tias mudanças que depen­dem da exposição a situações específicas de aprendizagem.
Em nossa opinião, ambas as posturas contêm parte de verdade, porém traduzem igualmente uma maneira incorreta de entender as relações entre aprendizagem e desenvolvimen­to, que deve ser superada. Nos dois casos, os processos de desenvolvimento e de aprendizagem são considerados quase independentes; atribuem-se quase que exclusivamente os pri­meiros a uma dinâmica interna da pessoa e os segundos, a urna pressão externa. A diferença reside na ênfase dada, mas nas duas posturas pressupõe-se que a única relação entre eles é de tipo hierárquico: a aprendizagem subordina-se ao desenvolvimento, ou o desenvolvimento subordina-se à aprendizagem.
A idéia de que existem processos evolutivos e processos de aprendizagem quimicamente puros deve, no entanto, ser rejeitada, porque contradiz algumas contribuições recentes da pesquisa psicológica. As pesquisas antropológicas e transcul­turais têm manifestado, segundo Scribner e Cole (1973), “a universalidade das capacidades cognitivas básicas” (a capacidade de generalizar, recordar, formar conceitos, raciocinar logicamente etc.) em todos os grupos culturais estudados. As          mesmas pesquisas (Cole et alii, 1971; Cole e Scribner, 1974; etc.), entretanto, ressaltam diferenças na maneira de utilizar essas capacidades em situações concretas de resolução de problemas; e, o que é mais interessante, mostram que essas diferenças estão relacionadas com os tipos de experiências educacionas. Tudo parece sugerir que existem alguns universais cognitivos, porém o fato de serem efetivamente postos em geral depende da natureza dos aprendizados específicos propiciados pelas experiências educativas.
A partir dessa constação, inspirando-se fortemente, por um lado, nos trabalhos pioneiros de Vygotsky, Luria e Leontiev, e, por outro, na pesquisa antropológica, surgiu uma nova proposta (Cole, 1981a; 1981b) que supera a controvérsia descrita e reconcilia em um esquema explicativo integrador os processos de desenvolvimento individual e o aprendizado da experiência humana culturalmente organizada (o que de­nominamos de aprendizagens específicas). O conceito de educação subjacente ao modelo de currículo proposto é tributário dessa proposição, cuja idéia básica consiste na rejeição da tradicional separação entre o indivíduo e a sociedade, que costuma ser introduzida pela análise psicologica.
Nesta ótica, todos os processos psicológicos que confi­guram o crescimento de uma pessoa - tanto os habitual­mente considerados evolutivos como os atribuídos, também habitualmente, a aprendizagens específicas - são fruto da interação constante que mantém com um meio ambiente culturalmente organizado. A interação do ser humano com seu meio está intermediada pela cultura desde o próprio momen­to do nascimento, sendo os pais, os educadores, os adultos e, em geral, os outros seres humanos os principais agentes media­dores. Graças às suas múltiplas oportunidades de estabelecer relações interpessoais com os agentes mediadores, o ser humano pode desenvolver os processos psicológicos Superiores - sua competência cognitiva -, porém tais processos sempre aparecem em primeiro lugar na vida de uma pessoa no plano da relação interpessoal e, conseqüentemente, sofrem a media­ção dos padrões culturais dominantes. O crescimento pessoal é o processo pelo qual o ser humano torna sua a cultura do grupo social ao qual pertence, de tal forma que, neste proces­so, o desenvolvimento da competência cognitiva está forte­mente vinculado ao tipo de aprendizagens específicas c, em geral, ao tipo de práticas sociais dominantes.
Para evitar mal-entendidos vamos precisar rapidamente que o conceito de cultura é utilizado aqui em um sentido muito amplo, próximo ao da antropologia cultural. A Cultu­ra, de acordo com Cole e Wakai (1984, p. 6-7), engloba múl­tiplos aspectos: conceitos, explicações, raciocínios, linguagem, ideologia, costumes, valores, crenças, sentimentos, interesses, atitudes, pautas de comportamento. tipos de organização familiar, profissional, econômica, social, tecnológica, tipos de hábitat etc. No decorrer da sua história, os grupos sociais encontraram numerosas dificuldades e geraram respostas cole­tivas para poder superá-las; a experiência assim acumulada configura sua Cultura.
Chegamos, assim, ao conceito de Educação, que desem­penha um papel central no esquema explicativo, porque permite compreender corno se articulam num todo unitário a Cultura e o desenvolvimento individual. Os grupos sociais ajudam seus membros a assimilar a experiência culturalmente organizada e a converter-se, por sua vez, em membros ativos e em agentes de criação cultural, ou, o que é a mesma coisa, favorecem seu desenvolvimento pessoal no seio da cultura do grupo, fazendo-os participar de um conjunto) de atividades que, consideradas globalmente, constituem o que chamamos de Educação.
Assim, a Educação designa o conjunto de atividades mediante as quais um grupo assegura que seus membros adquiram a experiência social historicamente acumulada e culturalmente organizada. Recordemos novamente que os instrumentos cognitivos de natureza simbólica e seus usos, os processos psicológicos superiores, fazem parte desta experiên­cia. As atividades educativas adotam diferentes modos de organização social conforme o volume e também o conteúdo concreto do conhecimento cultural.
No caso das sociedades primitivas por exemplo, um escasso nível de desenvolvimento científico e tecnológico, como algumas tribos de caçadores ou de pescadores estudadas pelos antropólogos, as atividades habituais dos adultos. A aquisição das pautas culturais pela criança – conhecimentos, conceitos, habilidades,valores, costumes etc. é feita através da sua par­ticipação, na medida do possível, das atividades dos adultos, ou simplesmente por observação e imitação. No outro extremo, encontramos as atividades educativas típicas das socie­dades com maior nível de desenvolvimento científico e tecnológico, que apresentam uma organização social muito mais complexa: são atividades nitidamente diferenciadas das atividades habituais dos adultos, correspondem a intenções próprias e geralmente são efetuadas em instituições especificamente habilitadas para esse fim (as escolas e outros centros educacionais) O conceito de escolarização (Schooling) designa esta subcategoria de atividades educativas em cujo contexto, por outro lado, a questão do currículo do ensino obrigatório adquire plena significação.
Nas paginas seguintes, nos referiremos exclusivamente à escolarização, mas não devemos esquecer que as atividades educativas dessa natureza não são de forma alguma as únicas presentes em nossa sociedade. Com elas, encontramos outras atividades igualmente importantes (na educação familiar, na educação extra-escolar, na educação impulsionada pelos meios de comunicação social etc.), que também deveriam ser consideradas na análise holística do fenômeno educativo.






CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O
CONCEITO DE CURRÍCULO

Que papel desempenha o currículo nas atividades edu­cativas escolares? Que elementos inclui? Em definitivo, que é o currículo? Esta pergunta é realmente difícil de responder, pois, na prática, cada especialista tem sua própria definição com nuanças diferenciais. Evitaremos o debate sobre que é o currículo, limitando-nos a precisar o que se entende por cur­rículo na proposta e aceitando que existem outras concepções diferentes da que aqui se contempla, porém sem polemizar. O caminho que leva a formulação de uma proposta curricular é muito mais o fruto de uma série de decisões sucessivas que o resultado da aplicação de alguns princípios firmemente estabelecidos e unanimemente aceitos. Conseqüentemente, o que importa é justificar e argumentar sobre a solidez das decisões que vamos tomando e, sobretudo, velar pela coerência do conjunto.
O caminho mais direto para precisar o que entendemos por currículo consiste em interrogar-nos sobre as funções que ele deve desempenhar e, para identificá-las, convém recordar e ampliar o que dissemos anteriormente a propósito da natureza das atividades educativas escolares. Esta modalidade de edu­cação surge quando a simples participação nas atividades habituais dos adultos, bem como sua observação e imitação, não são suficientes para assegurar aos novos membros do grupo um crescimento pessoal adequado. As atividades educativas escolares correspondem à idéia de que existem certos aspectos do crescimento pessoal, considerados importantes no âmbito da cultura do grupo, que não poderão ser realizados satisfato­riamente ou que não ocorrerão de forma alguma, a menos que seja fornecida uma ajuda específica, que sejam exercidas ativi­dades de ensino especialmente pensadas para esse fim. São atividades que correspondem a uma finalidade e são execu­tadas de acordo com um plano de ação determinado, isto é, estão a serviço de um projeto educacional. A primeira função do currículo, sua razão de ser, é a de explicitar o projeto - as que intenções e o plano de ação - que preside as atividades educativas escolares.
Enquanto projeto, o currículo é um guia para os encarregados de seu desenvolvimento, um instrumento útil para orientar a pratica pedagógica, uma ajuda para o professor. Por esta função, não pode limitar-se a enunciar uma série de intenções, princípios e orientações gerais que, por excessiva­mente distantes da realidade das salas de aula, sejam de escas­sa ou nula ajuda para os professores. O currículo deve levar em conta as condições reais nas quais o projeto vai ser realizado, situando-se justamente entre as intenções, princípios e orientações gerais e a prática pedagógica. E função do currículo evitar o hiato entre os dois extremos; disso depende, em grande parte, sua utilidade e eficácia como instrumento para orientar de a ação dos professores. O currículo, entretanto, não deve suplan­tar a iniciativa e a responsabilidade dos professores, convertendo­-os em meros instrumentos de execução de um plano prévia e minuciosamente estabelecido. Por ser um projeto, o currículo não pode contemplar os múltiplos fatores presentes em cada uma das situações particulares no qual será executado (cf., mais adiante, a discussão sobre currículos abertos e fechados).
Os componentes do currículo, os elementos que ele contempla para cumprir com êxito suas funções, podem agrupar-se em quatro capítulos.
  Proporciona informações sobre o que ensinar. Este capítulo inclui dois temas: conteúdos (termo que designa aqui, em sua acepção mais ampla, o que chamamos de “a experiên­cia social culturalmente aceita”: conceitos, sistemas explicati­vos, habilidades, normas, valores etc.) e objetivos (os processos de crescimento pessoal que se deseja provocar, favorecer ou facilitar mediante o ensino).
2º Proporciona informações sobre quando ensinar,, sobre a maneira de ordenar e dar seqüência aos conteúdos e objetivos. A educação formal abrange, com efeito, conteúdos complexos e inter-relacionados e pretende incidir sobre diver­sos aspectos do crescimento pessoal do aluno, sendo neces­sário, portanto, optar por uma determinada sequência de ação.
3º Proporciona informações sobre como ensinar,  isto é, sobre a maneira de estruturar as atividades de ensino/apren­dizagem das quais participarão os alunos, a fim de atingir os objetivos propostos em relação com os conteúdos selecionados.
4º Proporciona informações sobre que, como e quando avaliar. Na medida em que o projeto corresponde a certas intenções, a avaliação é um elemento indispensável que asse­gura se a ação pedagógica responde adequadamente às mesmas e introduz as correções oportunas em caso contrário.
Os quatro capítulos estão relacionados entre si e condi­cionam-se mutuamente, pois tratam de diferentes aspectos de um mesmo projeto: enquanto o primeiro (que ensinar?) expli­cita as intenções, os três restantes (quando ensinar?, como ensi­nar?, que, como e quando avaliar?) referem-se mais ao plano de ação a ser seguido de acordo com elas. Um dos problemas intrinsecos na elaboração do currículo reside em decidir co­mo concretizar esses diferentes elementos - mais tarde vere­mos que são várias as alternativas possíveis - e em assegurar a coerência de todos eles.
Em resumo, entendemos o currículo como o projeto que preside as atividades educativas escolares, define suas intenções e proporciona guias de ação adequadas e úteis para os professores, que são diretamente responsáveis pela sua exe­cução. Para isso, o currículo proporciona informações concre­tas sobre que ensinar,_quando ensinar, como ensinar e como e quando avaliar. Em princípio, esta colocação está próxi­ma da defendida por autores como Stenhouse, para quem “Um currículo é uma tentativa de comunicar os princípios e características essenciais de um propósito) educativo, de tal for­ma que permaneça aberto à discussão crítica e possa ser efeti­vamente transladado à prática” (1984, p. 29). Antes de con­tinuar, no entanto, convém esclarecer uma nuança com rela­ção à extensão do currículo. Para alguns autores, entre os quais Stenhouse, o curriculo inclui tanto a descrição do projeto educativo quanto a análise empírica do que realmente sucede nas salas de aula, quando o projeto é concretizado; isto explica, por exemplo, Que para Stenhouse o currículo deva abranger, além dos componentes mencionados, uma série de princípios para o estudo empírico da sua aplicação. É óbvio que existem dois aspectos relacionados com o currículo, o Projeto ou Desenho Curricu­lar e sua aplicação, e que ambos estão intimamente ligados. Mas, a nosso ver, o problema reside no fato de que, definido dessa maneira ampla, o currículo termina abrangendo a totalidade de elementos da educação formal, perdendo assim seu caráter específico e também sua operacionalidade. Por outro lado, resulta difícil admitir que a análise empírica daquilo que realmente acontece nas salas de aula possa ser reduzida ao desenvolvimento ou aplicação do currículo... a menos que no mesmo sejam incluídos absolutamente todos os fatores que, de uma forma ou de outra, incidam sobre a realidade escolar!
A seguir, e para frisar o caráter  de projeto do currículo, manteremos a diferença entre Projeto ou Desenho Curricular e Desenvolvimento ou Aplicação do Currículo como duas fases da ação educativa que se alimentam mutuamente, porém não se confudem.
Uma última precisão terminológica sobre os conceitos de instrução e de currículo para terminar este item de considerações gerais. O termo “instrução” habitualmente é utilizado, em sentido amplo, como sinônimo de “educação formal” e de “escolarização”; e, em sentido estrito, para referir-se aos componentes de metodologia do ensino, tanto em sua vertente de projeto como de execução efetiva (Laska, 1984). O termo “currículo” às vezes também é utilizado (por exemplo, Johnsou, 1 967; Novak, 1982) em sentido muito mais limitado, para referir-se apenas aos objetivos e conteúdos da educação formal. Assim, nossa maneira de entender o Projeto Curriicular inclui tanto aspectos curriculares em sentido estrito (ob­jetivos e conteúdos), como aspectos de instrução (relativos a como ensinar).

AS FONTES DO CURRÍCULO

O  primeiro elo da complexa cadeia de inevitáveis pro­blemas a enfrentar e resolver no processo de elaboração de um Projeto Curricular refere-se às suas fontes. Onde buscar a informação
conteúdos – e o plano de ação a seguir na educação escolar? Tradicionalmente, as respostas consistiram em dar prioridade a um a das possíveis fontes de informação em relação a todas as outras, seguindo modas mais ou menos passageiras ou adotan­do pontos de vista reducionistas, sem perceber que a complexi­dade e heterogeneidade de fatores que desembocam no Projeto Curricular obrigam necessariamente a levar em conta ao mes­mo tempo informações de origem e natureza diferentes.
Já em 1949, em obra clássica sobre o tema, R. Tyler ressalta, no tocante aos pontos suscetíveis de proporcionar in­formação para selecionar “sabiamente” os objetivos a afir­mação que se pode estender a todo o currículo —, que existe forte discrepância entre três posturas defendidas respectiva-mente pelos “progressistas”, pelos “essencialistas” e pelos “so­ciólogos”. Os primeiros destacam a importância de estudar a criança a fim de descobrir seus interesses, seus problemas, seus propósitos e suas necessidades, sendo esta a informação básica para selecionar os objetivos. Os “essencialistas”, por seu lado, consideram que os objetivos devem ser extraídos de urna aná­lise da estrutura interna dos conteúdos do ensino, das áreas de conhecimento. Por último, os “sociólogos” tendem a situar a fonte de informação principal para selecionar os objetivos na análise da sociedade, dos seus problemas, necessidades e caracerísticas. Não é difícil vislumbrar por trás dessas posturas outras tantas alternativas ainda atuais que dão primazia respecti­vamente à análise psicológica. à análise da estrutura interna das disciplinas e à análise sociológica, como fontes do currículo.
O          ponto de vista de Tyler sobre as fontes dos objetivos educativos é o de que as três proporcionam informações ne­cessárias, mas nenhuma delas sozinha é suficiente. Essa pers­pectiva é igualmente válida para o Projeto Curricular em seu conjunto. A análise sociológica permite, entre outras coisas, determinar as formas culturais ou conteúdo conhecimentos, valores, habilidades, normas etc. — que o aluno deve assimilar para tornar-se um membro ativo da sociedade e ao mesmo tempo um agente de criação cultural; também permite garantir que não ocorra uma ruptura entre a atividade escolar do aluno e sua atividade extra-classe A análise psicológica contribui com informações relativas aos fatores e processos que intervêm no crescimento pessoal do aluno, ajudando assim a planejar com mais eficácia a ação pedagógica. A análise epistemológica das disciplinas contribui para separar os conheci­mentos essenciais rios secundários, para buscar sua estrutura  interna e as relações entre eles, e suas propostas são decisivas para estabelecer seqüências de atividades de aprendizagem que facilitem ao máximo a assimilação significativa.
A essas três fontes do currículo devemos acrescentar            uma quarta: a própria experiência pedagógica. Um Projeto           Curricular não surge do nada e muito menos no caso do             ensino obrigatório —, mas parte de uma prática pedagógica         que aspira a transformar e melhorar. Para isso, oferece novos pontos de vista e alternativas, mas também integra as expe­      riêncías bem-sucedidas. Por outro lado, como projeto educa­tivo que é, o Projeto Curricular contrasta com a prática pedagógica e tem de estar permanentemente aberto às modificações e correções derivadas desse contraste. O desenvolvimen­to do currículo, e tomando a distinção anterior, é uma das fontes talvez a principal do processo de elaboração, re­visão e contínuo enriquecimento do Projeto Curricular.

 PSICOLOGIA E CURRÍCULO


Embora, como vimos, seja absolutamente imprescin­dível utilizar informações provenientes de diferentes fontes na elaboração do currículo, as que derivam da análise psicológica têm, a nosso ver, um tratamento especial. Em primeiro lugar, porque, ao referir-se aos processos subjacentes ao crescimento pessoal, sua pertinência está em grande parte assegurada sejam quais forem o nível educacional correspondente ao Projeto Curricular e as intenções concretas que o mesmo perseguir. Em segundo lugar, porque incidem em maior ou menor medi­da sobre os quatro blocos de componentes principais do currículo. Com efeito, as informações proporcionadas pela aná­lise psicológica são úteis para selecionar objetivos e conteúdos, para estabelecer seqüências de aprendizagem que propiciem ao máximo a assimilação significativa dos conteúdos e a consecução dos objetivos, para tomar decisões com respeito à maneira de ensinar e, naturalmente, para avaliar se foram atingidos os aprendizados prescritos na extensão e profundidade desejadas.
A questão das contribuições da psicologia com relação ao currículo e, em geral, à educação escolar é muito complexa e não pode ser abordada aqui com o detalhamento que exigiria um tratamento correto. Nosso objetivo, muito menos ambi­cioso, consiste em ressaltar alguns aportes de particular inte­resse para a elaboração do Projeto Curricular e que, em qual­quer caso, impregnam o modelo proposto. Assim, esclarece­mos que o que vem a seguir não passa de uma seleção e, como tal, incompleta. A seleção não afeta apenas o volume de contribuições potenciais, mas também sua orientação. No mo­mento atual, a psicologia da educação ainda não dispõe de um marco teórico unificado e coerente que permita dar conta dos múltiplos e complexos aspectos implicados nos processos de crescimento pessoal e da influência exercida sobre eles pelas atividades educativas escolares. Ainda não dispomos de uma teoria compreensiva da instrução com base empírica e

Psicologia e currículo apresenta um modelo de projeto cur­rícular concebido para servir como instrumento na tarefa de elaborar propostas curriculares dos ciclos e níveis de educação escolar O modelo parte de uma discussão sobre a finalidade da educação, as relações entre aprendizagem desenvolvimento e educação, e as funções tio currículo no planejamento de ensino.
A partir de uma série de colocações sobre estes e outros pontos e do pressuposto de que uma proposta curricular deve integrar informações que tenham origem em fontes socioantropológicas, disciplinares, pedagógicas e psicológicas, César Coll apresenta uma estrutura para a elaboração de propostas curriculares que reflitam os principais postulados da concepção construtivista de aprendizagem e ensino.

Séries Fundamentos – Área de Interesse do Volume
Educação e Pedagogia


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