terça-feira, 18 de março de 2014

O anúncio da Quaresma: Quem estiver com fome venha se alimentar sem pagar

José Lisboa Moreira de Oliveira
Adital

Desde o seu surgimento, ainda nos primeiros séculos do cristianismo, enquanto período de preparação para a celebração da Páscoa de Jesus, o tempo da Quaresma foi sempre marcado pelo convite ao jejum, à esmola e à oração. Porém, nem sempre os cristãos souberam entender o significado dessas três ações e, por isso, já vimos um pouco de tudo nestes dois milênios de cristianismo. Mesmo recentemente, depois de tantos avanços nos conhecimentos da Bíblia e da Tradição cristã, ainda é possível encontrar por aí pessoas que fazem uma interpretação esdrúxula dessas práticas. Hoje, de modo particular, está em evidência uma interpretação individualista que relaciona as três coisas com a salvação individual, como se Deus estabelecesse na porta do céu uma alfândega ou um posto para cobrar pedágio e São Pedro lá estivesse como aduaneiro. Por essa razão nunca é demais refletir sobre esse tema.Precisamos antes de qualquer coisa destacar a dimensão social das três práticas quaresmais. A introdução do jejum, da esmola e da oração neste período preparatório à Páscoa de Cristo nada tem a ver com salvação individual; não são práticas voltadas para garantir a entrada no céu. Pelo contrário, buscando respaldo no Primeiro Testamento, na tradição do povo hebreu, o cristianismo sempre ressaltou os aspectos sociais das três ações.
Já no período anterior ao cristianismo, quando vigorava a teologia da retribuição, segundo a qual Deus recompensava os justos por suas boas ações, os profetas bíblicos vão insistir na dimensão social do jejum (Is 1,16-20). Este não é para recompensar a pessoa, mas para convidá-la a sentir na pele o que os pobres e famintos sentiam de forma permanente. O objetivo do jejum não era ascético, penitencial, mas despertar a consciência dos abastados e saciados para as reais condições dos pobres, explorados e sofridos. Este despertar da consciência significava, na prática, o desenvolvimento de ações que pusessem fim à exploração e à injustiça que causavam a fome e a morte de pessoas inocentes (Is 58,1-12). Fiel a esta perspectiva Jesus rompe com uma prática do jejum como fim em si mesmo (Mt 9,14-15) e critica a postura daqueles que transformam tal prática em exibicionismo (Mt 6,16-18) e não percebem que essa ação deve servir apenas como forma de tornar as pessoas sensíveis ao sofrimento alheio (Lc 18,12).
Do mesmo modo acontece com a esmola. Não é praticada para garantir a entrada no céu e nem tão pouco para descarrego de consciência diante da evidente e permanente presença de pobres no meio de nós (Mt 6,2-4). A esmola deve ser antes de tudo um gesto de partilha e, como tal, deve levar o cristão ou a cristã a perceber que a existência da pobreza e da miséria não é decorrente da vontade de Deus e nem da preguiça dos pobres, mas o resultado da exploração por parte de um sistema injusto e cruel que mantém uns poucos ricos às custas de uma maioria absoluta de pobres explorados. Ao dar esmola o cristão deve fazê-lo com a consciência de que o que ele tem, além do que ele precisa para viver dignamente e com simplicidade, não é dele, mas daqueles que disso estão precisando para sobreviver (Lc 12,22-35). A partir desse gesto de partilha, ele é convocado a denunciar tudo aquilo e todos aqueles que tiram dos pobres o mínimo de dignidade a que eles têm direito (Tg 5,1-6).
Também a oração tem o seu aspecto social. Mesmo que seja um gesto revestido de interioridade, de discrição e de silêncio, sem exibicionismos "carismáticos” desmedidos (Mt 6,5-6), a oração é a preparação para a ação em favor dos outros. Não deve ser peditório a Deus, pois ele já sabe daquilo que precisamos (Mt 6,31-32). A oração deve necessariamente nos abrir à prática da justiça e da fraternidade, do amor misericordioso e da bondade (Mt 7,1-12). Se não for assim não será escutada por Deus (Mt 7,21-23).
Estou convencido da urgente necessidade de uma profunda catequese sobre o assunto, pois o que vemos, em nossas igrejas e comunidades, é exatamente o contrário. Tudo está revestido de intimismo, de busca imediata de satisfação dos próprios desejos e de tentativa de comprar a prosperidade e a salvação a qualquer custo. São poucas as comunidades cristãs e poucos os cristãos que já descobriram a perspectiva social dessas práticas quaresmais.
Um caso ilustra muito bem o que estou dizendo. Pouco tempo atrás uma senadora da nossa República, falando no âmbito da revisão de nossas leis e de nossos códigos, defendia a possibilidade de não penalizar aquelas pessoas que "furtassem” alguma coisa para satisfazer uma das necessidades mais básicas do ser humano: matar a fome. A posição da senadora causou um alvoroço nas redes sociais e não foram poucas as pessoas que a criticaram, afirmando que ela estaria estimulando e defendendo o furto.
A reação das pessoas causa surpresa se considerarmos que, de acordo com o Censo de 2010, quase 90% da população brasileira se diz adepta do cristianismo. Ora, uma das regras mais elementares do cristianismo é de que o faminto não se alimenta de vento e palavra bonita não enche barriga. Logo, por rigor de lógica, ele tem direito a se alimentar e se ele não tem condições de comprar esse alimento ele tem o direito de pegá-lo onde tiver (Tg 2,15-17). Esse princípio elementar do cristianismo foi herdado das culturas nômades do baixo Mediterrâneo. Nessas culturas (das quais os ciganos são os últimos remanescentes) os bens essenciais não são vendidos, mas cedidos a quem precisa, de modo que se alguém precisar de comida e de roupa, e encontra isso em algum lugar, tem o legítimo direito de se apropriar desses bens para satisfazer suas necessidades básicas. Isso foi codificado mais tarde na Bíblia hebraica (Lv 19,9-10; Dt 24,19-22; Rt 2,14-20) a ponto do profeta poder afirmar: "Atenção! Todos os que estão com sede, venham buscar água. Venham também os que não têm dinheiro: comprem e comam sem dinheiro e bebam vinho e leite sem pagar” (Is 55,1).
O que surpreende nessa tradição nômade, que depois se tornou legislação na Bíblia hebraica, é o fato de que esse é um direito dos pobres, independentemente da razão de sua pobreza. O que entristece na postura das pessoas de hoje é o contrário, ou seja, a indiferença diante do sofrimento. Ao invés de seguir o princípio cristão de denunciar a opulência dos ricos que gera a miséria (Tg 2,6), as pessoas de hoje querem fazer pesar sobre os pobres e sofredores a responsabilidade por todos os males. É claro que o dono do supermercado ou da mercearia da qual o pobre retirou o que precisava tem direito a ressarcimento. Mas, ao invés de responsabilizar o Estado e a própria sociedade por gerar pessoas famintas, os frequentadores de redes sociais querem culpabilizar os próprios pobres pela sua pobreza. Ao invés de aplaudir a proposta da senadora e denunciar a omissão do Estado e a indiferença das pessoas para com o sofrimento alheio, fazem recair sobre os mais pobres entre os pobres a responsabilidade pelo que lhes acontece.
Seria mais correto, por exemplo, denunciar aquela Rede de Televisão brasileira que deve centenas de milhões de reais de imposto à Receita Federal e ainda é declarada emissora oficial da Copa do Mundo. Seria mais cristão denunciar aquele banco, patrocinador oficial da Copa do Mundo, que deve bilhões de reais de imposto à Receita. Mas o que fazem as pessoas? Admiram e acreditam nessa televisão, participam dos realities shows por ela promovida, inclusive gastando do próprio dinheiro para participar dessa baboseira. Abrem suas contas nesse banco e assim por diante. Isso, sim, é que é incentivar o roubo e o furto e não propor que o pobre faminto possa pegar comida para matar a fome lá onde tiver alimento.
É hora de mudarmos, se queremos ser cristãos. O jejum, a esmola e a oração precisam ter conotação essencialmente social. Do contrário se torna ofensa a Deus (Is 1,11-15). Nesta Quaresma seria oportuno escutar o papa Francisco, o qual nos disse recentemente que a esmola não deve ser confundida com "caridade por receita” para tranqüilizar a própria consciência, mas experiência cristã que provoca mudanças sociais sérias (EG, 180). O jejum não deve ser um peso para expiar pecados (EG, 38-39). E a oração não pode ser reduzida a proposta alienante, consumo espiritual e nem expressão de individualismo doentio que busca salvação a qualquer custo (EG, 89-90). O cristianismo, para ser autêntico, precisa assumir o humano, "tocando a carne sofredora de Cristo no povo” (EG, 24). O resto é baboseira religiosa.
[José Lisboa Moreira de Oliveira é filósofo, teólogo, escritor, conferencista e professor universitário]

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