[Carlos Mesters, Mercedes Lopes e Francisco Orofino]
Quarta-feira, 19 de março de 2014 - 9h38min
Os
samaritanos eram desprezados pelos judeus. Este desprezo vinha de
longe, desde o século VIII antes de Cristo (2Rs 17,24-41), e transparece
em alguns livros do Antigo Testamento. O livro do Eclesiástico, por
exemplo, fala de um “povo estúpido que mora em Siquém, que nem sequer é
nação” (Eclo 50,25-26). Muitos judeus da Galileia, quando viajavam para
Jerusalém, não passavam pela Samaria. O Evangelho de João mostra Jesus
fazendo o contrário, passando pela Samaria e acolhendo os samaritanos.
Por causa disso, era criticado pelos judeus, que o xingavam de
“samaritano, possesso de demônio” (Jo 8,48). Depois da ressurreição, os
seguidores e as seguidoras de Jesus, seguindo o exemplo de Jesus,
superaram seus preconceitos e anunciaram a Boa-nova aos samaritanos (At
8,4-8). Nas comunidades do Discípulo Amado, havia muitos samaritanos.
Carlos Mesters, Mercedes Lopes e Francisco Orofino publicaram esta e outras reflexões no livro Raio-X da Vida.
1. João 4,1-6: O palco onde se realiza o diálogo entre Jesus e a samaritana
Quando
Jesus percebe que os fariseus poderiam irritar-se com a sua atividade
batismal, ele sai da Judeia e volta para a Galileia. Desse modo, evita
uma briga religiosa (Jo 4,1-3). Voltando para a Galileia, Jesus passa
pela Samaria. Por volta do meio-dia, ele chega junto do poço de Jacó.
Cansado da viagem, senta perto do poço, onde a samaritana o encontra. O
poço era o lugar tradicional de encontros e de conversas. Hoje, seria a
praça, o bar, a rodoviária, o shopping... É perto do poço que começa a
longa e difícil conversa que foi de muito proveito para ambos.
2. João 4,7-15: Primeira parte do diálogo: a conversa sobre a água ou o trabalho
2. João 4,7-15: Primeira parte do diálogo: a conversa sobre a água ou o trabalho
Água,
corda, balde e poço eram os elementos que marcavam o mundo do trabalho
da samaritana. É Jesus que toma a iniciativa do diálogo. Ele parte da
necessidade bem concreta da sua própria sede e diz: “Dá-me de beber?”
Pela pergunta a samaritana descobre que Jesus precisa dela para ele
poder resolver o problema da sua sede. Assim, Jesus desperta nela o
gosto de ajudar e de servir. Desde o começo da conversa, Jesus usa a
palavra água nos dois sentidos. No sentido normal: água que mata a sede;
e no sentido simbólico: água como fonte de vida e como dom do Espírito
Santo, prometido no Antigo Testamento (Zc 14,8; Ez 47,1-12). Desde o
começo da conversa, a samaritana entende a palavra água no seu sentido
normal de água que mata a sede do corpo. Existe uma tensão entre os
dois. Jesus tenta ajudar a samaritana a passar para um outro nível de
entendimento. A samaritana, por sua vez, procura levar Jesus a entender
as coisas conforme o sentido que elas têm no dia a dia. Por isso, por
esta porta da água ou do trabalho, Jesus não consegue comunicar-se com
ela e a conversa não avança.
3. João 4,16-18: Segunda parte do diálogo: a conversa sobre o marido ou a família
3. João 4,16-18: Segunda parte do diálogo: a conversa sobre o marido ou a família
Jesus
tenta estabelecer contato por uma outra porta. Ele diz: “Vá buscar seu
marido!” É a porta da família. Mas também aqui ele encontra a porta
fechada. A samaritana responde secamente: “Não tenho marido!” Jesus diz:
“Você falou bem. Você teve cinco maridos e o que tem agora não é o seu
marido!” Os cinco maridos evocam simbolicamente os cinco ídolos do povo
samaritano (2 Rs 17,29-30). Aquele com quem ela convive agora, ou seja, o
sexto a que Jesus alude, talvez seja João Batista, venerado como
messias, ou a fé diferente dos samaritanos em Javé. O Quarto Evangelho
sugere discretamente que o sétimo é o próprio Jesus, o messias, o esposo
que o povo estava esperando.
4. João 4,19-24: Terceira parte do diálogo: a conversa sobre o lugar da adoração
4. João 4,19-24: Terceira parte do diálogo: a conversa sobre o lugar da adoração
Finalmente,
por causa da resposta recebida, a samaritana identifica Jesus e diz:
“Vejo que o senhor é um profeta”. Neste momento, ela se situa na
conversa e começa a tomar a iniciativa. Muda o rumo da conversa e puxa o
assunto para a religião: Onde adorar Deus? Lá em Jerusalém ou aqui no
Monte Garizim? Os samaritanos tinham construído um templo no Monte
Garizim que ficava perto do poço onde eles conversam. Jesus entra pela
porta que a mulher abriu. Primeiro, ele relativiza o lugar do culto: nem
aqui nem lá! Neste ponto, os judeus não têm nenhum privilégio. Em
seguida, esclarece que tanto judeu como samaritano, ambos adoram Deus. A
diferença é que os judeus adoram o que conhecem. Os samaritanos adoram o
que (ainda) não conhecem, “porque a salvação vem dos judeus”, mas não
se restringe a eles. E Jesus termina dizendo que chegará o tempo em que
se poderá adorar Deus em qualquer lugar, contanto que seja “em espírito e
verdade”.
5. João 4,25-26: A revelação: “O Messias sou eu que estou conversando contigo!”
5. João 4,25-26: A revelação: “O Messias sou eu que estou conversando contigo!”
A
samaritana muda novamente o rumo da conversa e puxa o assunto para a
esperança messiânica do seu povo: “Sei que vem um Messias. Quando ele
vier, nos vai mostrar todas essas coisas!” Novamente, Jesus aceita a
mudança do rumo da conversa, entra pela porta que a samaritana abriu e
se apresenta: o Messias “sou eu que estou conversando contigo!” A esta
mulher, excluída e herética para os judeus da época, Jesus revelou, por
primeiro, a sua condição de Messias. Enquanto ele mesmo tomava a
iniciativa, a conversa não avançava. Ela só avançou e atingiu o seu
objetivo a partir do momento em que a samaritana se situou e começou a
tomar a iniciativa. Será que nós temos a mesma coragem de deixar ao
outro a iniciativa do rumo da conversa?
6. João 4,27-30: A transformação que o diálogo realiza na samaritana
Os discípulos tinham ido ao povoado comprar alimento (Jo 4,8). Retornando, encontraram Jesus conversando com uma mulher. Estranham, mas não dizem nada. Então, a samaritana larga o balde perto do poço e volta sem água para o povoado. Já não precisa da água do poço de Jacó, da antiga Lei. Ela havia encontrado a fonte da água que brotava dentro dela para a vida eterna (Jo 4,14). Chegando no povoado, ela anuncia Jesus: “Venham ver um homem que me disse tudo o que eu fiz! Será que ele é o Messias?” O resultado deste difícil diálogo parece muito reduzido. Jesus só conseguiu provocar uma pergunta na mulher: “Será que ele é o Messias?” Talvez seja este o resultado mais positivo que se possa imaginar. Jesus não dá respostas. Ele levanta perguntas que levam a pessoa a refletir sobre o sentido da vida.
7. João 4,31-38: A transformação que o diálogo realiza em Jesus
Mesmo correndo o risco de não obter nenhum resultado, Jesus não se impõe nem condena a mulher, mas respeita-a profundamente. Durante a conversa, ele não se fecha dentro da sua religião nem dentro da sua raça, mas se orienta por aquilo que ele mesmo aprendia da própria samaritana. No fim, esqueceu até a comida que os discípulos tinham trazido, pois presta atenção ao que o Pai lhe diz por meio da conversa com a samaritana: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e completar a sua obra!” (Jo 4,34). Jesus lê os fatos com outros olhos. Para os judeus, os samaritanos são um povo a ser desprezado. Para Jesus, eles são um campo fértil, pronto para a colheita (Jo 4,35). Ele descobre que, na vida da samaritana, pessoa não judia e não praticante, existe o “dom de Deus” (Jo 4,10). A Boa-nova de Deus existe na vida de todas as pessoas. Os discípulos e as discípulas não são os donos da Boa-nova. Devem ser servidores, instrumentos. Sua missão é ajudar as pessoas a descobrir o dom de Deus dentro das suas vidas.
8. João 4,39-42: O resultado da missão de Jesus na Samaria
Aqui temos o mesmo processo que já vimos na formação da primeira comunidade: encontrar, experimentar, partilhar, testemunhar, conduzir até Jesus. A samaritana encontrou, experimentou, partilhou, testemunhou e conduziu o seu povo até Jesus. Os samaritanos, por sua vez, escutaram a partilha que ela fez e, por isso, convidaram Jesus a ficar com eles. Durante a convivência de dois dias, eles mesmos experimentaram a Boa-nova e começaram a partilhar e a testemunhar a sua experiência com a samaritana: “Nós próprios ouvimos e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo!” Resumindo: nesta longa conversa, Jesus transgrediu várias normas religiosas e culturais da época: Passou pela Samaria, o que não era costume dos judeus. Sendo judeu, conversou com uma samaritana, o que era proibido. Sendo homem, conversou com uma mulher e pediu bebida a uma pessoa proibida, sem preocupar-se com as normas severas da pureza. Conviveu dois dias com os samaritanos. Conviver, comer e beber juntos era sinal de grande intimidade. A comunhão de mesa era permitida só com os da mesma religião.
Nenhum comentário:
Postar um comentário