terça-feira, 15 de novembro de 2011

Negras e negros, somos povo de consciência!!! (Claudio CEBI MG)

Cláudio Eduardo Rodrigues [1]

Os filhos de Cam: Cuxe, Mizraim, Pute e Canaã. 
Os filhos de Cuxe: Sebá, Havilá, Sabtá, Raamá e Sabtecá. 
Os filhos de Raamá: Sabá e Dedã. 
Cuxe gerou a Ninrode, o qual começou a ser poderoso na terra. 
Foi valente caçador diante do Senhor [...]. Gn 10,6-9a

Por anos a fio, enfatizou-se que 13 de Maio de 1888 é uma data significativa na história brasileira. Dia em que uma princesa, “preocupada com a condição de penúria das pessoas negras escravizadas no Brasil”, assinou lei que aboliu a escravatura. Dia em que uma princesa branca e da corte, num gesto ousado e escondido de seu pai, o imperador, teria mudado os rumos da história oficial por meio de um ato voluntário e individual.
Nessa perspectiva, para muitas pessoas e para a história oficial, 13 de Maio deveria ser a data em que todo negro e toda negra deveriam render graças a Isabel, a redentora que libertou o povo negro das atrocidades da escravidão. E, em muitos lugares do Brasil, ainda se tem essa idéia presente e reforçada.
Todavia, para o movimento negro brasileiro, não temos nada a celebrar no dia 13 de Maio, visto que a data não é expressão da história de união, organização e resistência do povo negro escravizado, explorado e excluído por mais de 400 anos. Hoje somos conscientes e procuramos gerar consciência de que a promoção de qualquer tipo de comemoração da abolição oficial da escravatura em 13 de Maio significa admitir a afirmação de que fomos passivos e aceitamos ser escravizados. Implica aceitar a afirmação preconceituosa de que, “como fomos e somos preguiçosos e acomodados”, foi preciso alguém tornar-se sensível com a nossa condição e promover nossa libertação por meio de um decreto.
Nesse sentido, ao longo dos anos que antecederam a abolição e os 119 anos posteriores àquele decreto, conquistamos a consciência de que a liberdade e a dignidade humana não podem ser objeto de concessão externa a nós mesmos, visto que qualquer tipo de concessão tem como conseqüência necessária a restrição de alguma coisa. Compreendemos e temos consciência de que a abolição da escravatura apenas nos concedeu uma “liberdade” figurada como: não estar acorrentado, não sermos submetidos a trabalho forçado e não sermos açoitados por resistir à escravidão.
Somos conscientes de que essa abolição ou liberdade não nos oferece nem oportuniza condições de viver dignamente, não nos possibilita o acesso a emprego seguro, à moradia, à educação, à saúde e a tantos outros direitos básicos. Em suma, não nos proporcionou tudo aquilo que todo ser humano merece e deve receber, independente de sua etnia, cor de pele, religião e opção sexual.
Hoje, por meio da retomada da nossa história na África e na América Latina, e, em especial, pelo nosso reencontro com nossa ancestralidade, temos a consciência de que a nossa história é de luta e resistência, de que somos povo que tem poder e astúcia como ressalta Gênesis 10,6-9a. Somos povo que, frente às adversidades impostas pela colonização – separação de famílias, mistura de grupos com línguas diferentes, etc. – tem a capacidade de reunir, organizar, resistir à opressão e de criar alternativas à sociedade de escravidão e de morte.
Percebemos essa luta e essa resistência em todos os momentos de nossa história, desde o momento em que nossos ancestrais foram arrancados da África até o seu sacrifício aqui no Brasil. Essa resistência se sucedeu pelas milhares de pessoas negras que se jogavam no mar aberto durante a travessia da África para a América, pelas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens de Cor que juntavam dinheiro para comprar a liberdade de outros escravos, pelos diversos grupos de congadas e terreiros de umbanda que mantiveram o culto as ancestrais de forma velada nas imagens de santos católicos, pelos grupos de capoeira que ensaiavam nas senzalas a luta contra seus algozes.
Essa resistência é mais nítida pela recuperação da memória e identificação de inúmeros quilombos que foram organizados pelo Brasil afora. Lugares de vivência alternativa e oposta à sociedade monárquica escravocrata, em que pessoas negras, indígenas e brancas podiam viver de forma harmoniosa, sem exclusão e exploração.
Por essas razões, 20 de Novembro é um dia importante a ser celebrado porque tomamos consciência de que, nesse mesmo dia do ano de 1695, Zumbi e tantas outras pessoas indígenas, brancas e negras - descendentes de Cam, poderoso e destemido aos olhos de Deus (Gn 10,6-9) -, tombaram no Quilombo dos Palmares na resistência às forças de escravidão e de morte das elites escravocratas. O sangue daquelas pessoas que tombaram e a destruição do projeto alternativo de sociedade em Palmares tornaram-se assim símbolo maior da organização e resistência para o povo negro.
A consciência disso e de muito mais nos faz entender que o dia que merece ser celebrado por nós, negros e negras, como marco da luta pela libertação, do sonho e desejo de libertação, é 20 de Novembro, como DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA.
Porém, é necessária, ainda, mais uma tomada de consciência. A data de 20 de Novembro não é só dia de festividade, celebração, rememoração das lutas passadas. É data forte para que se chame a atenção das pessoas - independente de raça, credo, opção sexual e política, etc. – para a necessidade de se tomar consciência dos problemas e desafios atuais que afligem as pessoas negras.
Hoje compreendemos que é um desafio sensibilizar tanto negros como outros povos e raças para a causa do povo negro, no sentido de construir um Brasil mais justo, igualitário e fraterno para todas as pessoas, pois não se pode construir tal Brasil sem resolver os problemas de nosso povo.
Nesse sentido, temos consciência de que o movimento negro conquistou muitos direitos a favor de nosso povo, tal como a lei 10.639/2003 que estabelece o ensino obrigatório da História da Cultura Afro-Brasileira, a implementação de políticas de ação afirmativa em diversos setores.
Sabemos, contudo, que a elaboração de leis e sua promulgação não são suficientes para gerar a modificação de uma realidade de preconceito e discriminação racial, pois embora “libertos” e com “direitos assegurados pela lei” ainda somos plena e constantemente discriminados pela cor da nossa pele. Isso se verifica quando somos, dentre tantos outros casos:
- explorados pelo trabalho informal nas cidades e até escravo na zona rural;
- submetidos a uma política salarial informal diferenciada, visto que pessoas negras recebem salários inferiores, se comparados com pessoas brancas que exercem a mesma função;
- as mulheres negras continuam, em sua maioria, a exercer funções ligadas ao cuidado da casa de pessoas brancas;
- as mulheres negras recebem salários ainda mais inferiores aos dos homens negros e brancos;
- as condições sociais e de convivência escolar nos excluem das escolas e universidades;
- somos e temos nossa cultura, religião e modo de viver associados ao demônio;
- somos apresentados ou associados a qualidades negativas.
A partir dessa realidade, temos consciência de que ainda há um longo caminho a ser percorrido na busca de dignidade de nosso povo. Para tanto, precisamos ser, continuamente, povo destemido, corajoso aos olhos de Deus, com força, poder para manter o sonho e o desejo de Palmares e de tantos outros quilombos vivos em nossos corações, corpos a ações.
Por toda essa CONSCIÊNCIA NEGRA, Zumbi e Palmares VIVEM!!!
VIVA 20 DE NOVEMBRO!!! VIVA A CONSCIÊNCIA NEGRA!!!


[1] Membro do CEBI-Minas Gerais e participante ativo e estudioso do movimento negro e das manifestações religiosas culturais negras, tais como Congadas, Folias de Reis. Filósofo formando pela UFU – Universidade Federal de Uberlândia e doutorando em Filosofia pela UFSCar – Universidade Federal de São Carlos. Atualmente mora em Teófilo Otoni, Minas Gerais, onde é professor da UFVJM – Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri.

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