quarta-feira, 9 de março de 2011

Textos sagrados (Lc 1,47-55)



                                                                                               Por Maria Soave

Vivo minha existência na insistência de partilhar, sobretudo com mulheres, crianças e empobrecidos, Vida e Bíblia.
Nas aulas de catequese das irmãs ursulinas (uma congregação católica romana) e nas faculdades de teologia, do mundo onde eu nasci e fui criada, sempre me disseram que Vida e Bíblia não andam bem abraçadas.
Aprendi, na minha formação doutrinal e acadêmica, que a Vida e a Bíblia não se olham de frente, entre iguais. A catequese das irmãs ursulinas e a doutrinas das faculdades de teologia me ensinaram que a Bíblia e a Vida não andam abraçadas, não constroem amor, numa troca de toques, respiros, choros e alegrias. A Bíblia, texto sagrado de nossa religião, é o texto mais importante, mais importante da Vida mesma... tanto é que, normalmente, escrevemos Bíblia com letra maiúscula e não fazemos a mesma coisa todas as vezes que escrevemos a palavra "vida"...
È ela, a Bíblia, que ilumina a Vida, aquela vida assim, comum, cotidiana e corriqueira e lhe dá a sacralidade que esta vida, por si mesma, não possui.
Por longos anos percebi vidas murcharem porque procuravam o sagrado fora delas. Corpos de mulheres e homens entristecidos e envergonhados porque criados em pensar que "o Sagrado" cheira incenso, toalhas brancas, túnicas alvejadas, mãos imaculadas e sem calos e não cozinha, panelas, roupa para lavar, crianças para criar, terra para lavrar, mãos e sonhos calejados...
Nestes anos de bênção e vocação como missionária nestas terras amadas, no meio de mulheres, crianças e pessoas empobrecidas, percebi que existe um feitiço ruim que os poderosos colocaram na religião e a paralisaram. Fizeram da religião ( palavra que vem do latim e significa re-ligar) algo que não junta mais Fé e Vida, Bíblia e Vida, os Corpos e o Corpo que é o Cristo. E a religião virou triste, mandona, seca e vazia...
Vivo minha existência na insistência de partilhar, sobretudo com mulheres, crianças e empobrecidos, Vida e Bíblia.
No mundo onde fui criada sempre me disseram que Vida e Bíblia não andam abr0açadas. A Bíblia é sagrada e superior em relação à Vida... mas o meu coração não consegue entender estas coisas de "superior"... "sobre"...
Para mim, que vivo de vocação e sonho é preciso sonhar...
Falar de Bíblia significa falar de textos...Gosto de saborear, bem baixinho e devagar, esta pequena palavra... textos... é sensual esta palavra... a raiz antiga desta palavra, nos traz a palavra "tecido", aquele produto feito de mil fios diferentes, trançados com magia e alquimia num tear... Produto feito de milhares, milhões de fios e do sonho das mãos de quem trançou... tecido... texto...
Da palavra texto e da palavra tecido vem também a "roupa" que veste a nossa alma, uma roupa tão transparente que a deixa muitas vezes exposta para olhares atentos.
É tecido o nosso coração... É tecido a nossa pele... É tecido nosso Corpo... Transparência de alma...
Quando falamos, então, de textos sagrados, queremos falar dos tecidos feitos de muitos fios, de muitas histórias e pessoas, trançados com magia e alquimia pelo Deus Libertador da História das pessoas empobrecidas. Quando falamos de textos sagrados, queremos falar dos nossos corpos, das nossas vidas, suores, corações e peles que tocam os textos da Bíblia, que com eles se entrelaçam, fazem amor, choram, se alegram e brigam, para que a Vida de mulheres, crianças e empobrecidos possa ter a última palavra (Jo 10,10).
Minh’alma é um tecido, um texto feito quase todo de águas. Conheço este meu texto de águas todas as vezes que suo de emoção, de calor, de cansaço ou de prazer. Meu corpo é um texto, um tecido de águas. Esta água que é meu " corpoalma" é sagrada!
Conheço este meu texto de água quando, a cada lua, o sangue visita meus dias, quando os rins purificam ou quando lágrimas de alegria, de tristeza ou de saudade percorrem o meu rosto. È esta "almacorpo", feita de água, que abraça outro tecido vivo que é a Bíblia e, neste abraço amoroso e curioso, o sagrado acontece e a Vida volta a ser plena e viva!
È dela que eu aprendi muito do que acabo de escrever. È em memória dela que estou falando. Na memória dela e das muitas mulheres que, como ela, fizeram do "corpoalmacorpo" espaço sagrado da revelação da vida em plenitude.
Dela sabemos o nome (coisa rara nas mulheres da Bíblia), um nome tão comum e corriqueiro, como o cheiro de cozinha ou de uma enorme trouxa de roupa suja para lavar: MARIA. Crescida nos duros códigos patriarcais do mundo judaico, onde a pureza e a sacralidade não moravam nos corpos das mulheres, mas no corpo duro dos sacerdotes que anunciavam com suas vestes brancas, imaculadas e sininhos pindurados nas túnicas sua chegada no templo.
Dela sabemos o nome, um nome tão comum como o cheiro se suor, como as lágrimas, como o sangue e os humores das luas nos corpos das mulheres...MARIA.
Tinha sido criada pensando que o Verbo, a Palavra fosse mais importante e sagrada do que o corpo de mulheres e empobrecidos.
Um sonho teimoso morava no "corpoalmacorpo"de Maria, um sonho herdado das mães na Fé; sonho de Agar, de Tamar, de Rute, de Bersabéia e de Raab ( Mt 1,1-17)... o sonho de corpos enamorados pelo projeto de Deus, de um mundo de paz e de relações re-criadas... corpos enamorados, por isso, Almas ressuscitadas!
Maria disse sim ao sonho que orava na sua "almacorpoalma". O texto, o tecido, o Corpo do Povo da Caminhada de Libertação e o Deus Libertador, fez amor com o Corpo de Maria... suores... humores... lágrimas... prazeres... sangue... José, homem novo... sonho de uma outra masculinidade feita de cuidado e ternura... E o Texto, a Palavra, o Verbo se fez Carne na Carne de Maria (Jo 1,1ss). A Vida do Filho de Deus começou a nadar nas águas interiores da barriga da alma da Mãe de Deus:
"A minha alma anuncia a grandeza do Senhor.
O meu espírito está alegre por causa de Deus, meu Salvador.
Pois ele lembrou de mim, sua humilde serva!
De agora em diante todos vão me chamar de mulher abençoada
Porque o deus poderoso fez grandes coisas por mim." ( Lc 1, 47-49)
Lembrando, neste mês de março, do "SIM" de Maria e do "NÃO" das muitas Marias operárias que lutaram, no dia 8 de março, contra a discriminação das mulheres e, por isso, morreram queimadas numa fábrica de TECIDOS!
É de textos-tecidos que a Vida nos leva a falar. É com estes tecidos, que são os corpos de mulheres, crianças e empobrecidos que precisamos nos comprometer!
Amém!

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