segunda-feira, 24 de março de 2014

História do terço

Origem e significado do santo Rosário


Corria o ano da graça de 1214. Havia bastante tempo que o Languedoc, região meridional da França, vinha sendo assolado por uma infame e terrível heresia: a dos albigenses.

Convocada uma Cruzada para estancar o mal, o choque entre católicos e hereges não tardou a acontecer. E a terra da nobre nação francesa passou a ser o teatro de inúmeras e sangrentas batalhas em que católicos e albigenses disputavam o terreno palmo a palmo.

S DOMINGOS DE GUSMAO-2.jpgPorém, apesar de tanto sangue derramado, a heresia continuava a devastar as almas. Como mover o Céu a derrotá-la? Como obter de Deus uma vitória definitiva?

Dias de terrível aflição foram aqueles! Havia horas em que tudo parecia perdido, e a heresia triunfante tudo destruía, manchava e conspurcava.

Nesse estado de tribulação extrema da Cristandade, São Domingos, movido por inspiração divina, entra numa grande e densa floresta próxima de Toulouse (capital do Languedoc). Ali passa três dias e três noites em contínua oração e penitência, não cessando de gemer, de chorar e de se flagelar, implorando a Deus que tivesse pena de sua própria glória calcada aos pés pela heresia albigense.

Em conseqüência de tamanho ardor e esforço, acaba por cair semi-morto. E eis que então, Maria Santíssima, resplandecente de glória, lhe aparece.
A conversão dos albigenses por São Domingos

"A Santíssima Virgem, que estava acompanhada de três princesas do Céu, lhe disse: ‘Sabes tu, meu caro Domingos, de que arma a Santíssima Trindade se serviu para reformar o mundo?' - ‘Ó Senhora! respondeu ele, Vós o sabeis melhor do que eu, porque depois de vosso Filho Jesus Cristo fostes o principal instrumento de nossa salvação'. Ela continuou: ‘O instrumento principal dessa obra foi o Saltério angélico, que é o fundamento do Novo Testamento. Portanto, se queres ganhar para Deus esses corações endurecidos, reza meu Saltério'. O Santo levantou-se muito consolado e, abrasado de zelo pelo bem desses povos, entrou na catedral. No mesmo momento os sinos tocaram, pela intervenção dos Anjos, para reunir os habitantes. No início da pregação caiu uma espantosa tempestade. A terra tremeu, o sol se nublou, os trovões e relâmpagos redobrados fizeram estremecer e empalidecer todos os ouvintes. Seu terror aumentou ao verem uma imagem da Santíssima Virgem, exposta num lugar eminente, levantar três vezes os braços para o céu, para pedir ao Senhor vingança contra eles se não se convertessem e não recorressem à proteção da santa Mãe de Deus.

O Céu queria, por esses prodígios, estimular a nova devoção do santo Rosário e torná-la mais conhecida. A tormenta cessou, por fim, devido às orações de São Domingos. Ele continuou seu sermão e explicou com tanto fervor e entusiasmo a excelência do santo Rosário, que quase todos os tolosinos o adotaram, renunciando a seus erros. Em pouco tempo verificou-se uma grande mudança na vida e nos costumes da cidade."
Essa narrativa, de autoria do Bem-aventurado Alano de la Roche (1428-1475), no seu famoso livro Da dignidade doROSARIO_01 RAE 22.jpgSaltério*, é conforme a uma sólida e venerável tradição, segundo a qual a pregação do Rosário foi recomendada pessoalmente por Nossa Senhora a São Domingos.

Apesar de, modernamente, a autenticidade desses fatos haver sido contestada por vários especialistas, que alegam a ausência de documentos contemporâneos que os atestem, a crítica histórica vem demonstrando o acerto de se considerar São Domingos - fundador da Ordem dos Pregadores (os dominicanos) - como o instituidor do Rosário, e a voz de numerosos Pontífices Romanos o confirmam.

Assim, a devoção do Rosário continua estreitamente vinculada a São Domingos, sem dúvida o seu primeiro grande propagador. Obtendo excelentes frutos, ele o pregou durante o resto de sua vida "não só pelo exemplo, como de viva voz, nas cidades e nos campos, diante dos grandes e dos pequenos, dos sábios e dos ignorantes, diante dos católicos e dos hereges" 58.
Alguns anos depois da morte de São Domingos, o costume da recitação do Rosário começ0u a cair pouco a pouco em desuso, por diversas causas. Um de seus filhos espirituais, o Bem-aventurado Alano de la Roche, no século XV, trabalhando incansavelmente na restauração dessa piedosa prática, conseguiu fazê-la reflorescer e difundir por todo o orbe católico.
Coroa de rosas

São Luís Maria Grignion de Montfort (1673-1716), grande apóstolo da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, consagrou um de seus extraordinários escritos a enaltecer as excelências do Rosário. Trata-se de O segredo admirável do santíssimo Rosário para se converter e se salvar, em cujas páginas o Santo comenta a origem dessa prática de devoção, seu significado e suas maravilhas, reveladas pela própria Mãe de Deus.

As considerações apresentadas em seguida são extraídas da mencionada obra de São Luís Grignion a respeito do Rosário.
Depois que o Bem-aventurado Alano de la Roche renovou essa devoção ao Saltério de Maria, a voz popular, que é a voz de Deus, conferiu-lhe o nome de Rosário, que significa "coroa de rosas". Quer dizer que todas as vezes que alguém reza, de modo conveniente, seu Rosário, deposita sobre a cabeça de Jesus e de Maria uma coroa formada de 153 rosas brancas e 16 rosas vermelhas do Paraíso, as quais nunca perderão sua beleza ou seu brilho. A Santíssima Virgem aprovou e confirmou esse nome MAOS DE NOSSA SENHORA COM O TER?O........jpgde Rosário, revelando a vários devotos seus que eles Lhe apresentariam tantas e agradáveis rosas quantas Ave-Marias recitassem em sua honra; e tantas coroas de rosas quantos fossem os Rosários por eles rezados.

O Irmão Afonso Rodrigues, da Companhia de Jesus, recitava seu Rosário com tanto fervor que se via, com freqüência, a cada Pai-Nosso, sair de sua boca uma rosa vermelha, e a cada Ave-Maria uma branca, igual em beleza e em bom odor.

As crônicas de São Francisco narram que um jovem religioso tinha o louvável costume de rezar todos os dias, antes da refeição, a coroa da Santíssima Virgem. Um dia, não sei por que imprevisto, deixou de fazê-lo. Tendo soado a hora do jantar, pediu a seu superior a permissão para recitá-la antes de se dirigir à mesa. Com esta licença, recolheu-se em seu quarto. Porém, como demorasse em retornar, o superior enviou um religioso para chamá-lo.

Esse religioso o encontrou no seu quarto, todo resplandecente de celeste luminosidade, e a Santíssima Virgem e dois anjos junto dele. À medida que ele dizia uma Ave-Maria, uma bela rosa saía de sua boca; os anjos recolhiam as rosas, uma após outra, e as colocavam sobre a cabeça da Santíssima Virgem, que manifestava sua alegria com tais adornos. Dois outros religiosos, enviados para ver a causa da demora dos primeiros, presenciaram todo esse mistério, e Nossa Senhora só desapareceu quando a coroa foi inteiramente recitada.

O Rosário é, pois, uma grande coroa, e o Terço [a terça parte do Rosário] é um pequeno chapéu de flores ou um diadema de rosas celestes que se deposita sobre a cabeça de Jesus e de Maria. Assim como a rosa é a rainha das flores, assim também o Rosário é a rosa e o primeiro dos atos de piedade.

fonte: acnsf

Discipulado de mulheres - O perfume encheu a casa

Texto de Tea Frigério - Assessora do CEBI Pará

“Maria tomou uma libra de perfume de nardo puro, muito caro, ungiu com ele os pés de Jesus e os enxugou com seus cabelos. A casa se encheu com o perfume.” (João 12,3).
Ungir, enxugar os pés com os cabelos, gestos de muita intimidade. Maria costumava sentar aos pés de Jesus, para escutá-lo (Lc 10,39; João 11,32). Tinha espiado para os aprendizes de discípulo fazer isso com seus mestres. Tinha ouvido falar que sentar aos pés do mestreera uma frase técnica que indicava estar no caminho do discipulado. Tinha visto e ouvido. Tinha desejo... Desejo, anseio profundo guardado em seu coração. Desejo e anseio acalentado longamente, mas, secreto.
Era proibido às mulheres estudar as Escrituras, ter nas mãos os rolos sagrados. Desde pequena, na sinagoga no lugar das mulheres escutava com atenção as Palavras. Mas que desejo ardente de tomar nas mãos os rolos, ler, estudar, enfim ser discípula. Não podia, era negado, era caminho somente para os homens.
Até que Jesus passou por Betânia e sua irmã Marta, rompendo as tradições o acolheu em sua casa. Então ela ousou e o Mestre acolheu, e se tornou discípula. Com elas outras a seguiram, trilharam o caminho do discipulado.
“O Mestre está aqui e te chama”, dissera-lhe sua irmã Marta. E, Maria “ao ouvir, levantou depressa, se dirigiu a ele... caiu aos seus pés” (João 11,28-29.32). Chamar, ouvir, seguir, estar aos pés o caminho do discipulado e Maria viveu tudo isso. Viveu e foi além.  Foi discípula e profetiza.
Aos pés de Jesus para escutar seu projeto, aos pés de Jesus para ungir e consagrar o projeto.

Ungir com perfume abundante e precioso. Assim como havia apreendido aos pés e com o Mestre: amor generoso e gratuito que permeava o agir de Jesus.
Ungir e derramar o perfume, como será derramado até a última gota o sangue “daquele que amou e amou até o fim” (João 13,1).
Ungir para preparar para luta, fortalecer na dor, no abandono, na traição da paixão. Ungir para realizar a unção do corpo que não poderá ser feita por causa da Páscoa. Ungir para antecipar a entrega total e radical.
Ungir, derramando todo o perfume precioso, para declarar a Jesus seu amor; para dizer a Jesus que sim entendeu seu projeto, sua proposta; para prometer sua fidelidade e radicalidade; para lhe assegurar que guardaria a memória; para lhe garantir continuidade.
“A casa se encheu com o perfume” (João 12,3). A casa, a comunidade que guarda e vive a memória de Jesus seu Mestre, enche de perfume o mundo inteiro.“Pobres sempre tereis entre vós, a mim não me tereis” (João 12,8). Casa, comunidade, ouvintes que ao fazer memória da mulher do perfume recordarão a presença de Jesus, recordarão seu chamado e apressadamente se levantarão para encontrá-lo, se jogar aos seus pés, escutá-lo e refazer o gesto de derramar todo o perfume, o perfume bom de Jesus, o perfume bom do seu projeto.“Levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e marrou-a na cintura. Colocou água na bacia e começou a lavar os pés...” (João 13,4-5).  Ungir os pés, lavar os pés ... Assim como ela fez, ele fez. Assim nós devemos lavar os pés uns dos outros.

“Não tem amor maior que dar a vida para seus amigos e amigas” (João 15,13).

A casa se encheu com o perfume!
Perfume de nardo
Para fortalecer
Concedendo a intuição
Ajudando a superar os medos
A solidão,
A incerteza do futuro.
Para infundir coragem
Na provação
Na dificuldade
Na solidão.
Perfume do amor,
Amorosidade,
Fidelidade, compartilhar,
Estar com...
Unção de profeta.
E assim Ele viveu o amor até o fim
Ungido, fortalecido, amado.
No perfume que se expande e permanece no ar.


Serra Pelada ontem ... Serra Pelada hoje...



Piedade Amazônica, pintura de irmã Eleanor C. Llanes ICM

As manchetes da televisão anunciavam Serra Peladaminissérie... Imagens começaram a passar na telinha da televisão e, as imagens da telinha foram desaparecendo substituídas pelas imagens de quando pisei pela primeira vez em Serra Pelada.
Foi quando? Foi lá nos anos entre 1990 - 1995, não lembro com precisão. Trabalhava na Equipe de Formação do Departamento de Pastoral do IPAR (Instituto de Pastoral Regional), veio um pedido da Diocese de Marabá: passar 3 semanas andando na região para formação bíblica nas comunidades. Aceitamos o desafio e, lá fomos nós... Na divisão das áreas a ser visitadas tocou-me Paraupebas, Carajas, Km 2, Serra Pelada. E assim começou minha itinerância nesta terra bendita por Deus pelas suas riquezas e amaldiçoada pelos homens pela sua ganancia.
Paraupebas, na planície, cidade dos trabalhadores, das domesticas; Carajas, montanha, mina de ferro ao céu aberto com sua estrutura social piramidal. Km 2, curva que guarda a memoria de um confronto de morte entre a força policial e lavradores. Itinerando nestas comunidades, absorvendo sua realidade cheia de contrastes. E num fim de semana me encontrei a caminho subindo a montanha com minha autorização para entrar em Serra Pelada. Fui acolhida pelo seu Abel que exercia a função de enfermeiro e animador da comunidade e um garimpeiro de barba e cabelo branco que infelizmente hoje não lembro o nome.
Sim em Serra Pelada havia uma pequena comunidade que tentava ser pequena lamparina em meio aquela realidade humana-desumana.
Escoltada pelos meus dois anfitriões de manhã fui percorrer a vila até chegarmos à cratera gerada pela mão humana em busca do metal precioso: ouro. Passam à minha frente imagens, imagens ... Homens que nem mais pareciam seres humanos... Formigueiro humano subindo e descendo dentro da cratera ... Formigueiro humano ferindo-se e ferindo a mãe terra ...
Umas poucas mulheres nas ruas, escuto ainda a voz do meu acompanhante dizendo: até pouco, mulher não entrava em Serra Pelada, somente liberava em algumas ocasiões... De reflexo, eu pensando em que ocasiões? Que mulheres ...?
A toda esquina, a toda hora surpresas. De tanto andar bateu a fome e fomos almoçar numa casa bonita, mesa farta, na conversa percebi que o dono de casa alugava um barranco, lá na cratera do ouro. Alugar um barranco, de quem alugava quem era o dono?
Os olhos enchendo-se de imagens, a mente fervilhando de informações.
E, a tarde num salão que também servia de capela, quando o padre ia para celebração, nos reunimos para o curso bíblico: sábado à tarde e domingo concluindo com a celebração da Palavra.
Sentada num banco olhava aqueles homens entrando, corpos curtidos pelo sol, chuva e vento, os ombros curvados, ainda que em repouso, pelo peso das sacas de terra, onde quem sabe havia um grama de ouro, mãos calejadas, feridas, rostos marcados pela desilusão, conservando nos olhos uma pequena centelha de esperança: talvez amanhã a descoberta, o filão.
Com eles abrimos o livro do Êxodo: sob o peso da escravidão ... em duros trabalhos ... capatazes ... gritaram sob o duro peso da escravidão ... Nunca estas palavras soram tão verdadeiras. Lemos e deixei ressoar estas palavras nos corpos, nos olhos, nos ouvidos das pessoas que me rodeavam, somente homens ... Nem precisou o seu Abel estimular suas falas ...
  •    O gato me convenceu a vir, ia ganhar muito dinheiro
  •    Não tenho coragem de voltar, pior de como sai, faz três anos
  •    Cavo e garimpo, mas tem quem me vigia, é o capataz pago pelo dono do barranco
  •    Quando intuímos que está perto um veio, ficamos também de noite para vigiar
  •    Mas ficamos com olhos abertos, com a mão na faca, na arma
  •    Há muita morte violenta aqui
  •    Naquele tempo só prostituta entrava
  •    E, mas ficavam somente uns dias e depois eram levadas, nunca as mesmas

São as palavras que voltam à minha mente. Nunca as palavras do livro do Êxodo pareceram tão atuais, tão verdadeiras. Faraó, capatazes, vigias, trabalhadores forçados. Capitalista, atravessador, quem aluga, capataz, gato, garimpeiro que cava, garimpeiro que carrega. A mesma pirâmide social se repetindo no tempo. Quem está no topo, quem lucra não tem rosto...
Hoje Serra Pelada é legalizada, mas a ferida na mãe terra está lá testemunhando a origem de sua escravidão, a origem da escravidão do ser humano que se tornou mercadoria porque o $$$ é o que move nossas relações.
Serra Pelada hoje tem outros nomes: Agronegócio, pecuarista, mineração, madeireiros, usinas de Tucuruí, Belo Monte ... Nomes que nos desafiam a levantar o tapete do silenciamento para termos a coragem de olhar de cara o que estas palavras-realidade provocam: migrações voluntarias e involuntárias, exploração do trabalho mal pago e em situações indignas, trabalho escravo e em servidão no latifúndio, empobrecimento que gera situações favoráveis ao trafico de pessoas ... Pessoa humana que vira mercadoria.
Serra Pelada nos convida a levantar o tapete para termos a coragem de olhar de cara o que significa Trafico de Pessoa Humana.
Serra Pelada nos convida a escutar as vozes que gemem sob o peso da escravidão e clamam... do fundo da escravidão, o seu clamor chegou até Deus ... É para liberdade que Cristo vos libertou (Ex 2,23-25; Gl 5,1).


Tea Frigerio
Missionaria de Maria - Xaveriana 

'Mulas': entre a pobreza e os papéis de gênero

Adital
Por Sandra Chaher

Reprodução
Faz anos que se registra um aumento das mulheres encarceradas por delitos vinculados à venda e transportes ilegais de drogas na América Latina. De 2006 a 2011, a população penitenciaria feminina na região duplicou. Segundo um estudo publicado recentemente, as razões do envolvimento das mulheres em atividades delituosas são econômicas, no contexto do continente mais desigual do mundo. "Muitas delas são mães solteiras que entram no negócio das drogas somente para poder alimentar suas filhas e filhos” afirma o informe, tentadas pela "falsa ilusão” de poder combinar uma atividade econômica com o cumprimento dos deveres tradicionais de cuidado e educação de seus filhos.
Ano a ano, milhares de mulheres atravessam as fronteiras nacionais de seus países contratadas como "mulas” do narcotráfico. Seu trabalho consiste em transportar a droga que será comercializada e, uma vez ingressa no circuito do consumo, engrossará os cofres das máfias organizadas que operam em nível internacional.
Muitas dessas mulheres morrerão fazendo seu "trabalho”. Outras ocuparão cadeias, dentro ou fora de seus lugares de origem. Uma opção que a maioria não escolhe e que aparece principalmente por sua situação socioeconômica.
Um documento recente do Consórcio Internacional sobre Política de Drogas (IDPC) estudou a população feminina nas prisões para analisar os papéis desempenhados pelas mulheres nas redes criminosas na América Latina e os processos de envolvimento. Procura verificar como as relações de gênero e os fatores socioeconômicos modelam a configuração das redes de tráfico internacional de drogas e a inserção das mulheres.
A feminização da pobreza no olho da tormenta
"Mulheres, delitos de drogas e sistemas penitenciários na América Latina” é como se denomina o documento do IDPC publicado em outubro de 2013 e que esteve a cargo de Corina Giacomello, do Centro de Investigações Jurídicas da Universidade Autônoma de Chiapas (México).
Uma das primeiras conclusões que revela a investigação é que existe um aumento de mulheres encarceradas por delitos vinculados à venda e transporte de drogas ilegais e que isso se vincula, não só com seu maior envolvimento nas redes de narcotráfico, também ao crescimento da perseguição penal dessas atividades. A população penitenciária feminina da América Latina duplicou entre 2006 e 2011: passou de 40 mil para mais 74 mil mulheres presas, a maioria acusada de delitos menores relacionados com as drogas.
Além disso, o estudo mostra como as mulheres ocupam o lugar de mão de obra barata e facilmente substituível nas redes criminosas. "São apresentadas principalmente como cultivadoras, coletoras, vendedoras de varejo, correios humanos (o que é geralmente conhecido como "mulas” ou "burreras”, entre outros nomes) e introdutoras de drogas em centros de reclusão”, aponta o estudo.
No entanto, na América Latina, as circunstâncias socioeconômicas constituem a principal motivação pela qual as mulheres se veem obrigadas a exercerem uma atividade ilegal. Vale destacar que, tal como aponta o estudo, a região tem o maior índice de desigualdade econômica do mundo e uma alta percentagem da população que vive na pobreza e indigência são as mulheres. Estamos diante um fenômeno que se conhece como feminização da pobreza e que se manifesta tanto em áreas urbanas como rurais. Colocando em foco o perfil das mulheres encarceradas, revela-se que "muitas delas são mães solteiras que entram no negócio das drogas somente para poder alimentar seus filhos”.
Na conversa com a entidade Comunicar Igualdade, Corina Giacomellho reflete sobre esse ponto. "Na América Latina coexistem processos mistos a respeito do papel as mulheres: por um lado, estas têm maior acesso a educação e uma maior presença nos espaços públicos, mas também são as principais protagonistas da pobreza e da pobreza extrema. Muitas vezes isto se combina com a maternidade e a responsabilidade tradicional das mulheres para "os outros”. O número de famílias monoparentais chefiadas por mulheres e de gravidezes adolescentes entre meninas dos níveis socioeconômicos mais baixos está aumentando, o que implica um maior número de mulheres em situação de pobreza e responsáveis únicas de seus filhos”. A especialista destaca que frente a este panorama, atividades do microtráfico – como a introdução de drogas nos centros de reclusão ou a venda ao varejo – oferecem a "falsa ilusão” de poder combinar uma atividade econômica com o cumprimento dos deveres tradicionais. "Estas mulheres encontram normalmente emprego nas atividades da economia informal muito mal remuneradas ( atividades de limpeza, sobre todo) e desempenham uma dupla ou tripla jornada laboral. As redes de tráfico identificam muito bem as mulheres que relutam e as envolvem aproveitando sua vulnerabilidade, por um lado, e a falta de mecanismos preventivos e de proteção por parte do Estado”, enfatiza.
Relações de gênero, a "grande” porta de entrada
Poe outra parte, as relações de gênero constituem um fator primordial do porquê das mulheres cometerem estes delitos, já que muitas delas se envolvem a partir de suas relações familiares ou sentimentais, seja como namoradas, esposas, mães e filhas , e em cumprimento dos papéis designados para homens e mulheres.
Sobre este ponto, Giacomello ressalta que as relações de gênero são espaços de poder geralmente assimétricos em detrimento das mulheres e definem os âmbitos de acesso e das modalidades de inserção a eles, diferenciados para homens e mulheres. Frente a isto, se faz necessário adaptar a perspectiva de gênero para analisar espaços como o narcotráfico, "o que permite visibilizar como homens e mulheres se envolvem em atividades delituosas relacionadas com drogas de maneira diferente, a partir de diversos fatores, entre eles sua identidade de gênero e os papéis que a sociedade os atribuem”. Conclui que analisar como o processo de construção da feminidade e da masculinidade influi no processo de envolvimento e nas formas de participação no trafico de entorpecentes "pode ajudar a construir políticas públicas de prevenção diferenciadas e adequadas para os diferentes agentes”.
Para a especialista, esse analise se aplica da mesma maneira ao aspecto punitivo. Geralmente, o sistema de justiça e o sistema penitenciário estão projetados a partir das necessidades e as características dos homens: "assim outros grupos ( indígenas , LGBT, pessoas estrangeiras e mulheres , entre outros) são assimilados sob uma falsa igualdade e neutralidade da norma. Assim, introduzir uma perspectivade gênero permite novamente elaborar políticas punitivas e carcerárias que respondam as exigências e características reais das pessoas”.
Cárcere: abandono e violência
Outra das principais conclusões que lançou a investigação de IDPC é que, uma vez em contato com o sistema de justiça penal e penitenciário, as mulheres são submetidas a formas de violência especificas. Isto se evidencia nos distintos aspectos como a falta de centros próprios para mulheres; as violações e o abuso sexual exercido pelo pessoal dos centros, a existência de redes de tráfico entre seções femininas e masculinas; a falta de atenção aos problemas de saúde mental;os danos infligidos sobre as filhas e filhos das mulheres na prisão, no caso dos que vivem com elas como os dos estão fora; a menor oferta de oportunidade educativas, laborais e de capacitação , entre outros.
Frente a isto o estudo faz referencia a uma "cegueira de gênero” em relação as leis que regulam o sistema penitenciário. Ao ser consultada acerca de que passos deveriam dar os Estados para sanar a situação, Giacomello afirma: "Tanto em nível das Nações Unidas, como no sistema interamericano tem produzido diversos instrumentos que fazem referencia as mulheres em reclusão, o mais recente e completo texto de As Regras de Bangkok. Além disso, existe evidência empírica suficiente sobre as formas de discriminação das mulheres na prisão. Os estados deveriam retomar esses princípios e a essa evidência para sustentar e modificar suas estratégias punitivas e penitenciárias e assumir plenamente seu papel de garantidores dos Direitos Humanos das pessoas privadas da liberdade, aplicando medidas gerais e também específicas, de acordo com as necessidades de cada grupo na prisão”.
Recomendações para se fazer da melhor maneira
O estudo realiza uma série de recomendações aos Estados em relação a elaboração de dados, a prevenção,a modificação do sistema penitenciário e a implementação de uma adequada política de drogas.
Giacomello destaca entre estas recomendações, por um lado a necessidade de uma reelaboração das medidas punitivas relacionadas com drogas que impliquem redução de sentenças, a incorporação de outros fatores além de substância – conduta – quantidade para determinar o real papel desempenhado por uma pessoa nas redes de narcotráfico e aplicar uma sentença proporcional. Por outro lado, é necessário incorporar de maneira plena as Regras de Bangkok; assim como garantir o cumprimento do interesse superior das crianças em suas políticas relacionadas com a administração e aplicação da justiça e com a execução da sentença.
Soma a necessidade de trabalhar a fundo com o funcionamento público responsável de deter, processar e sentenciar a pessoas por delitos de drogas em matéria de perspectiva de gênero, políticas de drogas e direitos de drogas na matéria de perspectiva de gênero, políticas de drogas e direitos humanos. E finaliza introduzindo um aspecto polêmico: Descriminalizar de maneira integral e efetiva a posse e consumo de todas as drogas. Sobre este último ponto se vem dando avanços na América Latina, e particularmente em nosso país existem projetos de lei que avançam nesse sentido.

domingo, 23 de março de 2014

Uma dieta globalizada


Esther Vivas
Adital



O que a Índia, Senegal, Estados Unidos, Colômbia, Marrocos, o Estado espanhol e muitos outros têm em comum? Que a alimentação é cada vez mais parecida, apesar das importantes diferenças que ainda persistem. Para além da McDonaldização das nossas sociedades e do consumo globalizado de Coca-Cola, a ingestão mundial de alimentos depende, progressivamente, de poucas variedades de cultivos. O arroz, a soja, o trigo, o milho se impõem, em detrimento de outras produções como a do milho, da mandioca, do centeio, da batata, do sorgo ou da batata-doce. Se a alimentação depende de poucas variedades de cultivos, o que pode acontecer diante uma colheita frustrada ou de uma praga? Teremos o prato garantido?
Avançamos rumo a um mundo com mais alimentos, menos diversidade e maior insegurança alimentar. Alimentos como a soja, que até poucos anos atrás eram irrelevantes, converteram-se em indispensáveis para três quartas partes da humanidade. Outros, já significativos, como o trigo ou o arroz se estenderam em grande escala, sendo consumidos hoje por cerca de 97% e 91%, respectivamente, da população mundial. Impõe-se, assim mesmo, uma alimentação ocidentalizada, "dependente” do consumo de carne, produtos lácteos e bebidas com açúcar. Mercados alimentares com interesses empresariais claros. É o que explica detalhadamente o recente estudo "Aumentando a homogeneidade nas cadeias alimentares globais e as implicações na segurança alimentar”, que afirma que caminhamos para uma "dieta globalizada”.
Um cardápio que, segundo os autores deste relatório, é "uma potencial ameaça para a segurança alimentar”. Por quê? Em primeiro lugar, porque apesar de consumir mais calorias, proteínas e graxas que há 50 anos, nossa alimentação é menos variada e é mais difícil ingerir os micronutrientes necessários para o organismo. Ao mesmo tempo, afirmam os autores, na atualidade "a preferência por alimentos ricos energeticamente e baseados em um número limitado de cultivos agrícolas globais e produtos processados associa-se ao aumento de doenças não transmissíveis como diabetes, problemas de coração ou alguns tipos de câncer”. Nossa saúde está em jogo.
A homogeneização do que comemos, em segundo lugar, torna-nos mais vulneráveis às colheitas frustradas ou às pragas, que, prevê-se, aumentarão com a intensificação da mudança climática. Somos dependentes de poucos cultivos, em mãos de um punhado de empresas, que produzem em grande escala, no outro lado do planeta, em condições de trabalho precárias, à custa do desmatamento de florestas, contaminação dos solos e águas e uso sistemático de agrotóxicos. Podemos, então, escolher livremente?
Não se trata de ser contra uma mudança de hábitos alimentares. O problema se dá quando estes são impostos por interesses econômicos particulares, à margem das necessidades das pessoas. A "dieta globalizada” é resultado de uma "produção-distribuição-consumo globalizados”, onde nem camponeses nem consumidores contam. Acreditamos decidir o que comemos, mas não é assim. Como afirmava o relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação, Olivier de Schutter, na apresentação do relatório "O potencial transformador do direito à alimentação”: "A principal deficiência da economia alimentar é a falta de democracia”. E sem democracia do campo à mesa, nem escolhemos nem comemos bem.


*A reportagem publicada no jornal espanhol Público, 15-03-2014. A tradução é de André Langer para Instituto Humanitas Unisinos www.ihu.unisinos.br.

Dez razões para não ter saudades da ditadura

Carlos Madeiro
Do UOL




José Nascimento/Folhapress

1. Tortura e ausência de direitos humanos

As torturas e assassinatos foram a marca mais violenta do período da ditadura. Pensar em direitos humanos era apenas um sonho. Havia até um manual de como os militares deveriam  torturar para extrair confissões, com práticas como choques, afogamentos e sufocamentos.
Os direitos humanos não prosperavam, já que tudo ocorria nos porões das unidades do Exército.
"As restrições às liberdades e à participação política reduziram a capacidade cidadã de atuar na esfera pública e empobreceram a circulação de ideias no país", diz o diretor-executivo da Anistia Internacional Brasil, Atila Roque. 
Sem os direitos humanos, as torturas contra os opositores ao regime prosperaram. Até hoje a Comissão Nacional de Verdade busca dados e números exatos de vítimas do regime. 
"Os agentes da ditadura perpetraram crimes contra a humanidade --tortura, estupro, assassinato, desaparecimento-- que vitimaram opositores do regime e implantaram um clima de terror que marcou profundamente a geração que viveu o período mais duro do regime militar", afirma. 
Para Roque, o Brasil ainda convive com um legado de "violência e impunidade" deixado pela militarização. "Isso persiste em algumas esferas do Estado, muito especialmente nos campos da justiça e da segurança pública, onde tortura e execuções ainda fazem parte dos problemas graves que enfrentamos", complementa.
Acervo UH/Folhapress

2. Censura e ataque à imprensa

Uma das marcas mais conhecidas da ditadura foi a censura. Ela atingiu a produção artística e controlou com pulso firme a imprensa. 
Os militares criaram o "Conselho Superior de Censura", que fiscalizava e enviava ao Tribunal da Censura os jornalistas e meios de comunicação que burlassem as regras. Os que não seguissem as regras e ousassem fazer críticas ao país, sofriam retaliação --cunhou-se até o slogan "Brasil, ame-o ou deixe-o." 
Não são raras histórias de jornalistas que viveram problemas no período. "Numa visita do presidente (Ernesto) Geisel a Alagoas, achamos de colocar as manchetes no jornalismo da TV: 'Geisel chega a Maceió; Ratos invadem a Pajuçara'. Telefonaram da polícia para o Pedro Collor [então diretor do grupo] e ele nos chamou na sala dele e tivemos que engolir o afastamento do jornalista Joaquim Alves, que havia feito a matéria dos ratos", conta o jornalista Iremar Marinho, citando que as redações eram visitadas quase que diariamente por policiais federais. 
Para cercear o direito dos jornalistas, foi criada, em 1967, a Lei de Imprensa. Ela previa multas pesadas e até fechamento de veículos e prisão para os profissionais. A lei só foi revogada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2009
Muitos jornalistas sofreram processos com base na lei mesmo após a redemocratização. "Fui processado em 1999 porque publiquei declaração de Fulano contra Beltrano. A Lei de Imprensa da Ditadura permitia isso: punir o mensageiro, que é o jornalista", conta o jornalista e blogueiro do UOLMário Magalhães

memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br / Arquivo Nacional

3. Amazônia e índios sob risco 

No governo militar, teve início um processo amplo de devastação da Amazônia. O general Castelo Branco disse, certa vez, que era preciso "integrar para não entregar" a Amazônia. A partir dali, começou o desmatamento e muitos dos que se opuseram morreram.
"Ribeirinhos, índios e quilombolas foram duramente reprimidos tanto ou mais que os moradores das grandes cidades", diz a jornalista paraense e pesquisadora do tema, Helena Palmquist.
A ideia dos militares era que Amazônia era "terra sem homens", e deveria ser ocupada por "homens sem terra do Nordeste." Obras como as usinas hidrelétricas de Tucuruí e Balbina também não tiveram impactos ambientais ou sociais previamente analisados, nem houve compensação aos moradores que deixaram as áreas alagadas. Até hoje, milhares que saíram para dar lugar às usinas não foram indenizados.
A luta pela terra foi sangrenta. "Os Panarás, conhecidos como índios gigantes, perderam dois terços de sua população com a construção da BR-163 --que liga Cuiabá a Santarém (PA). Dois mil Waimiri-Atroaris, do Amazonas, foram assassinados e desaparecidos pelo regime militar para as obras da BR-174. Nove aldeias desse povo desapareceram e há relatos de que pelo menos uma foi bombardeada com gás letal por homens do Exército", afirma.
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4. Baixa representação política e sindical

Um dos primeiros direitos outorgados aos militares na ditadura foi a possibilidade do governo suspender os direitos políticos do cidadão. Em outubro de 1965, o Ato Institucional número 2 acabou com o multipartidarismo e autorizou a existência de apenas dois: a Arena, dos governistas, e o MDB, da oposição.
O problema é que existiam diversas siglas, que tiveram de ser aglutinadas em um único bloco, o que fragilizou a oposição. "Foi uma camisa-de-força que inibiu, proibiu e dificultou a expressão político-partidária. A oposição ficou muito mal acomodada, e as forças tiveram que conviver com grandes contradições", diz o cientista político da Universidade Federal de Pernambuco, Michael Zaidan.
As representações sindicais também foram duramente atingidas por serem controladas com pulso forte pelo Ministério do Trabalho. Isso gerou um enfraquecimento dos sindicatos, especialmente na primeira metade do período de repressão. 
"Existiam as leis trabalhistas, mas para que elas sejam cumpridas, com os reajustes, é absolutamente necessário que os sindicatos judicializem, intervenham para que os patrões respeitem. Essas liberdades foram reprimidas à época. Os sindicatos eram compostos mais por agentes do governo que trabalhadores", lembra Zaidan.
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5. Saúde pública fragilizada

Se a saúde pública hoje está longe do ideal, ela ainda era mais restrita no regime militar. O Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era responsável pelo atendimento, com seus hospitais, mas era exclusivo aos trabalhadores formais. 
"A imensa maioria da população não tinha acesso", conta o cardiologista e sindicalista Mário Fernando Lins, que atuou na época da ditadura. Surgiu então a prestação de serviço pago, com hospitais e clínicas privadas.
"Somente após 1988 é que foi adotado o SUS (Sistema Único de Saúde), que hoje atende a uma parcela de 80% da população", diz Lins.
Em 1976, quase 98% das internações eram feitas em hospitais privados. Além disso, o modelo hospitalar adotado fez com a que a assistência primária fosse relegada a um segundo plano. Não existiam planos de saúde, e o saneamento básico chegava a poucas localidades. "As doenças infectocontagiosas, como tuberculose, eram fonte de constante preocupação dos médicos", afirma Lins. 
Segundo estudo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), "entre 1965/1970 reduz-se significativamente a velocidade da queda [da mortalidade infantil], refletindo, por certo, a crise social econômica vivenciada pelo país". 

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6. Linha dura na educação 

A educação brasileira passou por mudanças intensas na ditadura. "O grande problema foi o controle sobre informações e ideologia, com o engessamento do currículo e da pressão sobre o cotidiano da sala de aula", sintetiza o historiador e professor da Universidade Federal de Alagoas, Luiz Sávio Almeida. 
As disciplinas de filosofia e sociologia foram substituídas pela de OSPB (Organização Social e Política Brasileira, caracterizada pela transmissão da ideologia do regime autoritário, exaltando o nacionalismo e o civismo dos alunos e, segundo especialistas, privilegiando o ensino de informações factuais em detrimento da reflexão e da análise) e Educação, Moral e Cívica. Ao mesmo tempo, com o baixo índice de investimento na escola pública, as unidades privadas prosperaram.
Na área de alfabetização, a grande aposta era o Mobral (Movimento Brasileiro para Alfabetização), uma resposta do regime militar ao método elaborado pelo educador Paulo Freire, que ajudou a erradicar o analfabetismo no mundo na mesma época em que foi considerado "subversivo" pelo governo e exilado. Segundo o estudo "Mapa do Analfabetismo no Brasil", do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), do Ministério da Educação, o Mobral foi um "retumbante fracasso."
Os problemas também chegaram às universidades, com o afastamento delas dos centros urbanos e a introdução do sistema de crédito. "A intenção do regime era evitar aglomeração perto do centro, enquanto o sistema de crédito foi criado para dispersar os alunos e não criar grupos", diz  o historiador e vice-reitor do Fejal (Fundação Educacional Jayme de Altavila), Douglas Apratto.
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7. Corrupção e falta de transparência 

No período da ditadura, era praticamente impossível imaginar a sociedade civil organizada atuando para controlar gastos ou denunciando corrupção. Não havia conselhos fiscalizatórios e, com a dissolução do Congresso Nacional, as contas públicas não eram analisadas, nem havia publicidade dos gastos públicos, como é hoje obrigatório.
"O maior antídoto da corrupção é a transparência. Durante a ditadura, tivemos o oposto disso. Os desvios foram muitos, mas acobertados pela força das baionetas", afirma o juiz e um dos autores da Lei da Ficha Limpa, Márlon Reis. 
Reis afirma que, ao contrário dos anos de chumbo, hoje existem órgãos fiscalizatórios, imprensa e oposição livres e maior publicidade dos casos. "Estamos muito melhor agora, pois podemos reagir", diz.
Outro ponto sempre questionado no período de ditadura foram os recursos investidos em obras de grande porte, cujos gastos eram mantidos em sigilo. 
"Obras faraônicas como Itaipu, Transamazônica e Ferrovia do Aço, por exemplo, foram realizadas sem qualquer possibilidade de controle. Nunca saberemos o montante desviado", disse Reis. "Durante a ditadura, a corrupção não foi uma política de governo, mas de Estado, uma vez que seu principal escopo foi a defesa de interesses econômicos de grupos particulares."
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8. Nordeste mais pobre e migração

A consolidação do Nordeste como região mais pobre do país teve grande participação do governo do militares. "Nenhuma região mudou tanto a economia como o Nordeste", diz o doutor em economia regional Cícero Péricles Carvalho, professor da Universidade Federal de Alagoas. 
Com as políticas adotadas, a região teve um crescimento da pobreza. "Terminada a ditadura, o Nordeste mantinha os piores indicadores nacionais de índices de esperança de vida ao nascer, mortalidade infantil e alfabetização. Entre 1970 e 1990, o número de pobres no Nordeste aumentou de 19,4 milhões para 23,7 milhões, e sua participação no total de pobres do país subiu de 43% para 53%", afirma Péricles
O crescimento urbano registrado teve como efeito colateral a migração desregulada. "O modelo urbano-industrial reduziu as atividades agropecuárias, que eram determinantes na riqueza regional, com 41% do PIB, para apenas 14% do total em 1990", diz Péricles. 
Enquanto o campo era relegado, as atividades urbanas saltaram, na área industrial, de 12% para 28% e, na área do comércio e serviços, de 47% para 58%. 
"A migração gerou mais pobreza nas cidades, sem diminuir a miséria no campo. A população do campo reduziu-se a um terço entre 1960 e 1990", acrescenta Péricles. 
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9. Desigualdade: bolo cresceu, mas não foi dividido

"É preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo". A frase do então ministro da Fazenda Delfim Netto é, até hoje, uma das mais lembradas do regime militar. Mas o tempo mostrou que o bolo cresceu, sim, ficou conhecido como "milagre brasileiro", mas poucos comeram fatias dele.
A distribuição de renda entre os estratos sociais ficou mais polarizada durante o regime: os 10% dos mais ricos que tinham 38% da renda em 1960 e chegaram a 51% da renda em 1980. Já os mais pobres, que tinham 17% da renda nacional em 1960, decaíram para 12% duas décadas depois.
Assim, na ditadura houve um aumento das desigualdades sociais. "Isso levou o país ao topo desse ranking mundial", diz o professor de Economia da Universidade Federal de Alagoas, Cícero Péricles.
Entre 1968 e 1973, o Brasil cresceu acima de 10% ao ano. Mas, em contrapartida, o salário mínimo --que vinha recuperando o poder de compra nos anos 1960-- perdeu com o golpe. "Em 1974, em pleno 'milagre', o poder de compra dele representava a metade do que era em 1960", acrescenta Péricles. 
"As altas taxas de crescimento significavam mais oportunidades de lucros altos, renda e crédito para consumo de bens duráveis; para os mais pobres, assalariados ou informais, restava a manutenção de sua pobreza anterior", explica o economista. 
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10. Precarização do trabalho

Apesar de viver o "milagre brasileiro", a ditadura trouxe defasagem aos salários dos trabalhadores. "Nossa última ditadura cívico-militar foi, em certo ponto, economicamente exitosa porque permitiu a asfixia ao trabalho e, por consequência, a taxa salarial média", diz o doutor em ciências sociais e blogueiro do UOLLeonardo Sakamoto.
Na época da ditadura, a lei de greve, criada em 1964, sujeitava as paralisações de trabalhadores  à intervenção do Poder Executivo e do Ministério Público. "Ir à Justiça do Trabalho para reclamar direitos era possível, mas pouco usual e os pedidos eram minguados", explica Sakamoto.
"Nada é tão atrativo ao capital do que a possibilidade de exercício de um poder monolítico, sem questionamentos", diz Sakamoto, que cita a asfixia dos sindicatos, a falta de liberdade de imprensa e política foram "tão atraentes a investidores que isso transformou a ditadura brasileira e o atual regime político e econômico chinês em registros históricos de como crescimento econômico acelerado e a violência institucional podem caminhar lado a lado".

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